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"Cem anos de solidão": "É como lidar com a Bíblia", diz diretora de série baseada em livro

Laura Mora, assim como o próprio autor, morto há dez anos, era cética em relação à possibilidade de filmar a saga da família Buendía, que estreia nesta quarta-feira na Netflix

Coronel Aureliano Buendía com o pelotão de fuzilamento Coronel Aureliano Buendía com o pelotão de fuzilamento  - Foto: Divulgação/Netflix

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O escritor Gabriel García Marquéz sempre relutou em deixar sua obra-prima, “Cem anos de solidão” (1967), ser transformada em produção audiovisual. Dez anos após sua morte, porém, não há mais contra o que lutar.

Estreia nesta quarta (11), na Netflix, a primeira temporada da série que adapta a saga centenária da família Buendía e do mítico povoado de Macondo, atormentado por guerras, peste, loucura, amores incendiários e outros não-correspondidos. O lançamento oficial foi anteontem, em Bogotá, e teve a presença do presidente colombiano Gustavo Petro e de Rodrigo García, filho de Gabo responsável por negociar os direitos do livro com a plataforma de streaming.

O contrato só foi assinado porque houve o compromisso de que toda a produção fosse latino-americana, e as filmagens feitas inteiramente na Colômbia. O vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1982 sempre desprezou qualquer proposta de adaptação para as telas porque não podia nem pensar numa Macondo americanizada — como aconteceu com o universo de “Amor nos tempos de cólera”, filme de 2007 feito por um estúdio americano que colocou Javier Bardem (e Fernanda Montenegro) hablando inglês.

Gabo espantava os produtores também porque achava impossível filmar uma saga tão intrincada, distribuída ao longo de décadas e com tantos personagens (vários, ainda por cima, com nomes muito semelhantes).

‘É como lidar com a Bíblia’
A cineasta colombiana Laura Mora, que divide a direção dos episódios com o argentino Alex Garcia Lopez, era do time do escritor. Achava o plano impossível.

— Para nós, colombianos, é como lidar com a Bíblia. E, no início, eu estava muito cética quanto à ideia de levar uma literatura de tão alto nível para outra linguagem, tão diferente — disse a diretora, celebrada pelos filmes autorais “Matar Jesus” (2017) e “Os reis do mundo” (2022), por videochamada. — E muitas das adaptações de outras obras de Gabriel García Márquez, na minha opinião, não foram muito precisas na abordagem.

Desde o princípio, ficou estabelecido, portanto, que “Cem anos de solidão” seria uma série — e não um filme — “para haver tempo de explorar todas as complexidades de seis gerações de uma família”, diz Laura. Uma temporada também não daria conta: saem agora oito episódios, e mais oito ainda serão lançados. Outra decisão foi a de se manter fiel às palavras do livro a partir da voz de um narrador que permeia todos os episódios.

Parênteses: quem leu o livro, logo de início, percebe quem ocupa esse posto. A célebre frase inaugural (“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”) está lá, ispis literis, como outras tantas mais.

— Toda vez que o narrador aparece, você sente que é a beleza das palavras daquele livro que te conduz pela jornada — diz Laura, curiosa pelo recepção dos episódios no Brasil. — Apesar de não falarmos a mesma língua, sinto que é o país da América Latina mais semelhante à Colômbia na cultura e nos problemas (risos).

Sangue latino
Publicado primeiramente na Argentina — onde, reza a lenda, as 10 mil cópias da primeira edição esgotaram em apenas três semanas —, “Cem anos de solidão” é uma obra clássica do realismo fantástico latino-americano. Ao dar tratamento literário às fábulas e símbolos da região caribenha , García Márquez aproveitou também para criticar as desigualdades impostas pelo colonialismo e imperialismo na América Latina. Por isso, pensa a atriz Vinã Machado (que interpreta Pilar Ternera, uma das fundadoras de Macondo que permeia toda a história dos Buendía), a história dificilmente vai perder sua relevância, posto que, na essência, ainda somos o mesmo continente sobre o qual o colombiano escreveu há 60 anos.

— As condições sociopolíticas da América Latina mudaram muito pouco em relação à visão que Gabriel García Márquez tinha — reflete a atriz. —José Arcadio diz isso quando está fundando Macondo: “Vamos buscar um lugar onde ninguém decida nem a forma como vamos morrer.” Trata-se de liberdade absoluta, de poder sonhar com um mundo novo. Acho que isso é muito contemporâneo.

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