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CINEMA

Com o filme "Marte Um", Gabriel Martins defende o direito de sonhar em um "país fraturado"

Filme mineiro ganhou quatro prêmios do Festival de Gramado conta história de família negra periférica

"Marte Um", filme de Gabriel Martins"Marte Um", filme de Gabriel Martins - Foto: Divulgação

Encerrado no último final de semana, o 50º Festival de Gramado teve como um de seus principais destaques uma produção mineira. Apesar de não ter vencido o prêmio principal da noite, “Marte Um” levou para casa quatro troféus Kikito e foi ovacionado em sua sessão no festival. No páreo por uma vaga para representar o Brasil no Oscar, o filme chega nesta quinta-feira (25) aos cinemas de 21 cidades brasileiras, incluindo Recife e Afogados da Ingazeira, em Pernambuco.
 


Coproduzida pelo Canal Brasil, a obra é uma realização da Filmes de Plástico, produtora formada na periferia de Contagem, em Minas Gerais, e que costuma representar esse cenário de origem em seus trabalhos. A produção é o primeiro longa-metragem que Gabriel Martins dirige sozinho. Em 2019, ele lançou “No Coração do Mundo”, feito em parceria com Maurilio Martins.

Focada no cotidiano de uma família negra e periférica, a trama se passa nos últimos meses de 2018. Embora não esteja presente nos diálogos, o resultado das eleições presidenciais daquele ano são anunciados em cena através de rádios e televisões. Segundo o diretor, que também assina o roteiro, o processo político vivenciado pelo País nos últimos anos influenciou a sua criação.
 

“A partir da Copa do Mundo de 2014, eu me peguei refletindo muito sobre uma espécie de crise de identidade pela qual o Brasil estava passando. Havia a emergência de novas formas de abordar questões como raça e gênero, tudo isso colidindo com pensamentos muito conservadores. Dentro dessa crise, eu tentava entender os significados de família e de sonhos, diante de um país fraturado”, comenta. 

Personagens com complexidades

Gabriel buscou captar tantas mudanças presentes no País através das complexidades simbólicas e psicológicas de seus personagens. Para o diretor, mesmo não falando abertamente sobre questões políticas, o longa não deixa de ter esse viés em sua abordagem afetiva. “Vejo sim como um filme político, no sentido de que ele defende e convoca para si a necessidade de mantermos a chama da esperança acesa, mesmo diante de um cenário de cinismo tão grande”, diz. 

O filme apresenta ao público os dilemas individuais e coletivos dos membros da família Martins. Deivinho (Cícero Lucas), o filho caçula, guarda o sonho secreto de ser astrofísico e viajar para Marte. Seu pai, Wellington (Carlos Francisco), no entanto, quer vê-lo jogando futebol com a camisa do Cruzeiro. Porteiro de um prédio de luxo, ele frequenta as sessões dos Alcoólicos Anônimos (AA) e ostenta com orgulho o fato de estar há quatro anos sem beber.

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O sonho de Deivinho e participar de missão em Marte (Foto: Divulgação)

Eunice (Camilla Damião), a filha mais velha, planeja morar com a namorada, mas ainda esconde a relação dos pais. Já a matriarca da família, Tércia (Rejane Faria), é uma diarista que, após ser vítima de uma pegadinha feita por um programa de televisão, passa a acreditar que está sofrendo com uma maldição. 
 

“Como é o meu primeiro longa-metragem de direção solo, inevitavelmente eu me debruço de maneira muito pessoal sobre ele. Vejo esse filme como uma espécie de autoconhecimento também. Quando eu escrevo esses personagens, estou tentando entender o meu relacionamento com o meu pai, com a minha mãe, com o mundo à minha volta, com a minha negritude e com o meu lado feminino. Eu empresto o meu sobrenome a esses personagens porque, de alguma forma, é um longa sobre a minha história e minha forma de pensar as coisas”, conta. 

Na história contada por Gabriel, o grande sonho de Deivinho é fazer parte da missão Marte Um. Encabeçado por uma empresa holandesa, o projeto tinha o objetivo de instalar uma colônia humana no “planeta vermelho” até 2030, mas acabou falindo ainda em 2019. A menção à empreitada no longa, segundo o diretor, tem um caráter simbólico importante. “Acho bonito que esse menino tenha o direito de ter um sonho distante, que parece não ter sido feito para ele”, aponta. 

Com o Oscar em vista

Sonhar alto, aliás, também faz parte do momento vivido atualmente pela equipe do filme. Diretor e demais profissionais envolvidos na produção aguardam ansiosamente o dia 9 de setembro, quando a Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais deve anunciar a obra escolhida para representar o País na disputa por uma indicação ao Oscar em 2023. 

“Estamos muito empolgados com a possibilidade dessa indicação, mas sabemos que são muitos filmes na disputa, muitos votantes e opiniões divergentes. Torcemos muito para que o ‘Marte Um’ possa ser cogitado, porque isso seria  importante para um filme que é independente. Se isso acontecer, vamos ficar muito felizes e trabalhar com todas as forças para honrar essa escolha”, promete.

Com ou sem indicação ao Oscar, o longa já começou a traçar sua trajetória internacional. Antes mesmo de ser exibido no Brasil, a obra estreou no Festival de Sundance, em janeiro do ano passado, e já passou por 35 festivais internacionais. Gabriel diz que ficou feliz ao perceber reações emocionadas nas sessões que acompanhou em outros países. 

“Esse longa tem um diálogo muito universal. É um filme que, mesmo incrustado numa realidade muito específica brasileira, traz conflitos possíveis de entender independentemente da nossa origem e cultura”, declara. 

"Não! Não Olhe"

Por coincidência, “Marte Um” estreia no circuito comercial brasileiro no mesmo dia em que o norte-americano “Não! Não Olhe!” chega por aqui. Com orçamentos e propostas distintas, as duas produções guardam sim alguma semelhança, como defende o diretor mineiro. “Sou fã do Jordan Peele e vejo uma conexão muito forte na ideia de complexificar, através do cinema, a existência da pessoa negra no mundo contemporâneo”, afirma. 

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