Crise da Europa e seus reflexos na arte
Grécia sofreu com situação migratória, mas problemas não alcançam o conteúdo da exposição “documenta 14”
Considerada como ‘a grande exposição de arte contemporânea do mundo’, a “documenta 14”, que ocorre em Kassel, na Alemanha, a cada cinco anos, pela primeira vez este ano tem uma edição para além das fronteiras germânicas.
Inaugurada em 6 de abril em Atenas, na Grécia, a mostra foi batizada de “Learning from Athens” (Aprendendo com Atenas), com curadoria encabeçada pelo polonês Adam Szymcyzk. Na teoria, a ideia é mostrar a cidade grega, através de obras de centenas de artistas do mundo inteiro, como símbolo do que há de bom e ruim na Europa: berço da cultura, da civilização, e recentemente acometida por uma grave crise econômica e migratória que desencadeou outros problemas sociais como xenofobia e, consequentemente, violência e desemprego, e fim do bem estar social europeu.
“É como se a Grécia simbolizasse tudo pelo qual o mundo ocidental tem passado. É um País fragilizado que ao mesmo tempo resiste a essa fragilização quando se nega a pagar a dívida externa, por exemplo, em vez de deixar a população passar fome. É o berço cultural da civilização europeia”, resume o curador Moacir dos Anjos, enviado especial ao local, a partir de parceria entre a Fundaj, instituição na qual trabalha como pesquisador, e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA) com o objetivo de trazer para o Recife um olhar crítico sobre o que está acontecendo na arte contemporânea mundial. Ele dividiu sua experiência no Kulturforum, na última semana, no CCBA, na Boa Vista.
Na prática, Moacir presenciou o dominador (Alemanha) subjugando o dominado (Grécia) ; o devedor sendo ‘usado’ pelo credor. “O conceito de aprender com Atenas foi lentamente abandonado por outro chamado de ‘deseducação’, uma proposta de criticar o formato de exposição e a missão de estabelecer valores e ideias preconcebidas”. Resultado: ficou difícil saber a proposta do trabalho de certos artistas, quando nunca se ouviu falar deles, pois só há ao lado de sua obra o título e seu nome. Sequer a data é mencionada. “Foi uma estratégia deliberada dos curadores de não dar lições aos espectadores, de fazer com que desaprendessem; criar uma certa confusão para se desvencilhar de conceitos preconcebidos”, disse Moacir.
Para o curador, no entanto, essa estratégia não funcionou. “Para mim essa ambição foi desmedida porque tanto a instituição que promove a “documenta”, artistas e público de Atenas possuem essa série de condicionamentos longamente estabelecidos sobre o que é arte. Não dá para se desvincular deles em três horas de visitação”, critica Moacir, para quem existe uma imensa distância entre a qualidade e a experiência. “A relação passiva entre o público e o que está sendo exposto parece permanecer na arte. A falta de informação leva ao desinteresse pelas obras”, avalia.
Moacir contou que viu uma jornalista inglesa acessando o Google o tempo inteiro para tentar compreender a obra do artista com a qual se deparava.
Espalhadas por toda a cidade, em locais abertos e fechados, há obras como uma barraca de camping feita de mármore, em alusão aos imigrantes e ao material típico da Grécia clássica.
Moacir alega que se chocou com um artista cuja obra era filmar imigrantes em situações nas quais o próprio artista cometia humilhações com o refugiado, como quando lhe presenteia com um casaco e pede para que ele se vire para a câmera, fazendo um xis em vermelho em suas costas, como se fosse um alvo! Mas a cidade não ficou alheia a essa ‘dominação’. Ao mesmo tempo acontece a Bienal de Atenas, um evento artístico que critica a documenta, seus gastos financeiros altíssimos em uma cidade em recessão, e o fato de não interagir devidamente com a capital.
A documenta tem publicado também uma revista, “South as a state of mind” (sul como estado mental). “South” é o nome de uma revista grega. “Durante dois anos a redação foi ocupada pela equipe curatorial da documenta, quase como uma colonização; uma invasão da Kassel em Atenas. Mas o que se ouve é a fala do norte ‘norteando’”, critica Moacir. O norte, aliás, ainda norteia o elenco de artistas. São pouquíssimos os trabalhos da América do Sul e da África. Do Brasil, não há nenhum.
“E olha que ocupamos uma posição internacional de destaque no mercado das artes”, ressalta. Em junho, a filósofa Bárbara Buril irá para Kassel, na Alemanha, para a segunda parte da documenta. “Minha inquietação é pesquisar as pessoas que estão fazendo arte na internet”, diz. Na volta, Bárbara deve reunir o público em outro Kulturforum organizado pelo CCBA para discutir a arte contemporânea. Em Kassel, as obras expostas serão diferentes.
Criada pelo governo alemão no pós-guerra, a “documenta” pretendia divulgar uma nova imagem da Alemanha. Em Kassel foi construído o primeiro museu erguido na Europa com essa finalidade, no século 19. Na mesma cidade ficavam concentradas as maiores fábricas de munição do País.