Crítica: 'O Animal Cordial' é uma fábula violenta sobre o Brasil
Primeiro longa-metragem de Gabriela Amaral Almeida, 'O Animal Cordial' conta com grande atuação de Murilo Benício, Irandhir Santos e Luciana Paes
As primeiras cenas do filme "O Animal Cordial" sugerem uma ideia de normalidade: o cotidiano em um restaurante, o cozinheiro, a garçonete, o dono. O expediente está perto de terminar, faltam 15 minutos para a cozinha fechar, mas um cliente pede um prato de coelho e um casal quer o melhor vinho e carne vermelha. É quando tudo muda: dois jovens com os rostos cobertos entram no local e anunciam um assalto. Essa noite banal em um restaurante vira então um inferno de horrores surpreendentes.
"Eu estava num restaurante que tinha sido assaltado uma semana atrás, com a Luana Demange, que é a co-escritora do argumento, e aí a gente começou a se questionar sobre o valor do medo na sociedade, como o medo acaba sendo usado para vender, para separar as pessoas, e dessa discussão filosófica, existencial, social, a gente começou a imaginar personagens e situações que se passassem dentro de um restaurante fictício", explica Gabriela Amaral Almeida, diretora do filme, em entrevista por telefone com a Folha de Pernambuco.
Inácio (Murilo Benício) é o dono do restaurante e seu primeiro impulso é desarmar os bandidos e amarrá-los. Djair (Irandhir Santos), o cozinheiro, e Sara (Luciana Paes), a garçonete, tentam argumentar, assim como os clientes, sobre a necessidade de chamar a polícia, mas o empresário se nega. Inácio fala pouco, é um homem de aparência calma e serena, mas Gabriela consegue sugerir todo um tumulto interno, uma violência brutal e adormecida, através da câmera fixa em seu rosto e do som, gradualmente mais intenso e soturno.
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"Minha relação com o horror é prévia à minha própria decisão de fazer cinema", explica a diretora. "Eu consumo narrativas do gênero em literatura e cinema desde muito pequena. Fiz mestrado sobre [o escritor norte-americano] Stephen King, sempre foi um gênero que falou à minha sensibilidade", ressalta.
É o primeiro longa-metragem de Gabriela, que já dirigiu curtas como "Uma primavera" (2011) e "A mão que afaga" (2012), além de ter assinado o roteiro do terror "Quando eu era vivo" (2014), de Marco Dutra. A cineasta mostra uma interessante noção de autoria e prazer no gênero horror e suspense. "Acho que todo filme de horror, terror ou filmes de medo, que lidam com essas angústias, trabalham com a noção de morte, quase como uma maneira de encarar a vida filosoficamente", opina a diretora.
"Nos filmes de horror, a morte é sempre uma questão central, seja porque você teme que o protagonista morra, seja porque você esteja falando diretamente desse assunto. E ao falar de morte com esse peso, você acaba se relacionando com a vida de forma mais rica, mais vívida. Ao contrário do que muita gente acha, acredito que os autores de horror têm um apreço e uma admiração muito grande pela vida. Porque tematizam justamente o fim dela", sugere.
A força do filme está fundamentalmente na atuação. "Tive a fortuna de trabalhar com a doação de todos os atores. Esse é um filme de elenco, o elenco é um personagem vivo, então é importante dar ao ator a possibilidade de construir. Cada um é uma ilha de complexidade. A filmagem é o momento em que esses personagens se chocam e criam a ilusão de profundidade", explica.
O gênero horror está atrelado a um roteiro que subverte expectativas, criando personagens que no momento de desespero e morte parecem revelar seus medos obscuros e desejos secretos. "Tive quatro meses para escrever o roteiro. É pouco tempo. Mas foi um trabalho concentrado", diz Gabriela. "As viradas são os momentos mais importantes da dramaturgia. Nenhum personagem pode estar numa jornada dramatúrgica à toa. Todo personagem tem uma função dramática", ressalta.
Cotação: bom