Cultura do machismo está em todos gêneros musicais
Por décadas, o discurso machista esteve presente nas músicas brasileiras e internacionais, não só no Funk e demais músicas de periferia
O Carnaval vem dobrando a esquina e, com ele, a preocupação sobre assédio e disseminação do machismo vai crescendo. É que, nessa época do ano, é comum que atitudes e falas machistas venham seguidas de um “mas é Carnaval!” risonho e desconfortável. Isso reflete também nas músicas da época de festas: todo ano, a tensão aumenta enquanto se observa uma música com uma letra duvidosa ganhar espaço nas ladeiras, na boca e no pé da galera.
A discussão começa, mas logo é abafada pelo som dos blocos. E, no meio da folia, quem vai lembrar de prestar atenção na letra da música que canta? Esse ano, contudo, a história foi diferente. Abriu espaço, também, para questionamentos sobre todo tipo de música: o machismo rola solto e não é de hoje, e não é só na festa de Momo. É o ano todo.
"Taca a bebida / Depois taca a pica / E abandona na rua". Foi com esses versos que o carioca MC Diguinho chegou ao topo do ranking das músicas brasileiras mais ouvidas na plataforma digital Spotify. "Surubinha de leve" já era cotada para hit carnavalesco, mesmo com os gritos, os esperneios, as súplicas para que se enxergasse, naquela música, a apologia ao estupro e a violência contra a mulher.
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Protestos que teriam passado despercebidos, quem sabe, não fosse pela paraibana Yasmin Formiga, que deu um passo a frente ao protestar visualmente contra a canção. Maquiada de forma a simular uma violência doméstica, com hematomas e sangue, a adolescente tirou uma foto simples, segurando uma placa com um trecho da música. "Sua música ajuda as raízes da cultura do estupro a se estenderem", escreveu junto a imagem. O protesto viralizou, petições foram feitas e, logo mais, a música foi retirada do Spotify, rendendo até um pedido de desculpas de MC Diguinho, que alegou, muito espertamente, ter sido mal interpretado. “Taca a bebida / Depois taca e fica / Mas não abandona na rua”, cantou o MC, com a letra, segundo ele, modificada.
Final feliz? De forma alguma. A misoginia, isto é, o ódio ou a aversão às mulheres, se encontra entranhada em músicas de todo tipo. Afinal, já diziam as letras de "Ai, que saudade da Amélia", de Mário Lago e Ataulfo Alves, "Ai, meu Deus, que saudade da Amélia / Aquilo sim é que era mulher / Às vezes passava fome ao meu lado / E achava bonito não ter o que comer". Ou "Eu preferiria te ver morta do que com outro homem, garotinha / É melhor você correr pela sua vida, se puder", cantavam os Beatles, aclamada banda britânica, ainda na década de 1960, com "Run for Your Life". "Então eu vou te cortar a cabeça, Maria Chiquinha / Que cocê vai fazer com o resto, Genaro, meu bem? / O resto? Pode deixar que eu aproveito", cantarola Junior, ainda criança, ao lado da sua irmã Sandy, em 1991, na música "Maria Chiquinha".
Os exemplos são diversos e perpassam gênero musical. “É uma poética que vai se sofisticando, mas o tipo de olhar androcêntrico, machista, é o mesmo. Claro que algumas vão ser mais diretas e por isso mesmo são mais agressivos. Isso tem totalmente a ver com a cultura patriarcal que a gente vive, não é de se espantar”, analisa a pesquisadora comunicacional Mariana Lins, mestre em cultura pop pela Universidade Federal de Pernambuco e integrante do Laboratório de Análise de Música e Audiovisual (LAMA), também da UFPE.
Segundo pesquisas de Tobias Greitemeyer, doutor em Psicologia Social e professor da Universidade de Innsbruck, na Áustria, músicas com mensagens machistas podem estimular o ouvinte à violência contra a mulher. "Os participantes masculinos de nosso estudo ouviram apenas duas músicas diferentes com letras misóginas e mostraram um aumento considerável em relação a agressão às mulheres. O que pode ser dito sobre o efeito disso na vida real, onde os homens provavelmente ouvem centenas de músicas misóginas durante a vida?", questiona o pesquisador em seu artigo.
"Isso provavelmente se tornará ainda mais pronunciado e poderia levar a agressões ainda mais severas, como estupro ou outras formas de assédio sexual. Se essa conexão puder ser estabelecida na vida real, as letras de músicas misóginas precisam ser consideradas em uma luz mais crítica do que foram até agora, podendo até requerer censura por lei", escreve.
"Considerando que o machismo é algo enraizado em nossa cultura como um todo, de fato ele refletiria na música desde seu início. Na música brasileira, quando ouvimos canções mais antigas de mulheres aceitando traições, e morrendo de amores, é porque elas apenas poderiam ser intérpretes, nunca compositoras, o que foi mudando com o passar do tempo", lembra a jornalista musical Débora Cassolatto, curadora musical da ação Songs of Violence, premiada no Festival de Cannes.
"Talvez nossa linguagem e expressões estejam mais explícitas atualmente, o que acaba impactando a música, que é uma forma de expressão cultural. Mas temos diversos exemplos de várias épocas que, dentro de sua linguagem e impacto na sociedade, são absurdas", reflete, citando, como exemplo, "Hey Joe", de Hendrix, sobre matar a esposa por causa de uma traição, a autoexplicativa "Você Não Passa de Uma Mulher", de Martinho da Vila, e "Vai Tomar Dormindo", do MC Roba Cena, sobre estuprar a namorada se ela dormir antes do sexo.
Para Karina Buhr, o racismo acaba atrelando o discurso machista às músicas da periferia - Crédito: Pri Buhr/Divulgação
Funk: a vítima
Apesar da amplitude do machismo no campo musical, é comum que o ataque a canções e artistas machistas venha acompanhado a um discurso racista e preconceituoso contra classes mais baixas e músicas consideradas “menores”. Na Internet, ataques ao funk são comuns: “o que esperavam, deixando o nível da música brasileira cair tanto?”, reclama um internauta, em resposta a uma notícia sobre “Surubinha”.
Na opinião da cantora Karina Buhr, conhecida pelo teor feminista que adota em suas letras, é fácil perceber porque os gêneros frutos da periferia são os primeiros alvos dessa revolta. “O machismo é forte em tudo e em todos os gêneros musicais. Tem a questão do racismo, que acho o primeiro grande problema para o alerta soar sempre primeiro para o funk e também para o rap. E tem também o fato das letras serem mais escrachadas e tendo o sexo como tema forte e daí chocar mais as pessoas", opina.
"Vinicius de Moraes cantando que ‘me desculpem as feias, mas beleza é fundamental’, ou Noel Rosa, com a voz tranquila, cantando que ela ‘merece um tijolo na testa’ passam bem mais tranquilos pelos pescoços desatentos do que ‘afoga essa vaca dentro da piscina’. São crueldades diferentes, expressadas de formas diferentes, mas fazem parte do mesmo machismo violento. São violências irmãs, que contribuem para que mulheres sigam sendo excluídas, maltratadas e mortas”, defende a artista pernambucana.
A pesquisadora Mariana Lins concorda, ressaltando a necessidade de sempre observar o contexto por trás das canções, num jogo entre identificar as nuances entre opressão e privilégio. “Temos que pensar primeiro quem são esses homens, de que gênero está se falando. No caso da música periférica, a coisa da hipersexualização feminina tem muito a ver com o valor interno. Pensando nos gêneros periféricos — no brega, no funk — o sexo é um valor. No caso da mulher, principalmente, porque tem uma objetificação, e a quantidade de artistas masculinos é enorme. É uma cultura patriarcal, uma cultura fálica que tem uma coisa do homem como figura principal”, analisa.
“Todas as vezes que você vê esses artistas da periferia sendo confrontados, é uma coisa que também está no discurso deles. Sheldon [Ferrer, o MC], quando foi interpelado, disse que a música dele está retratando a realidade da comunidade em que ele vive. A classe média não sabe o que se passa na periferia. Só que acontece que temos que ver qual é o limite desse realismo todo”, pondera Mariana. “Acredito que tenha coisas de revelar uma realidade da periferia que muitas vezes a classe média desconhece e estranha, mas existe também uma questão de ética, respeito e patriarcalismo, de violência de gênero mesmo, porque é uma coisa muito acintosa”, comenta.
Para a pesquisadora, não restam dúvidas de que o motivo para o apedrejamento específico para com o funk seja sua origem. “A origem diz tudo. Você não vai apedrejar a poética de Roberto Carlos, que é um artista branco, consolidado, que tem o prestígio que tem, apesar de ele ter uma série de músicas com narrativas de relacionamentos abusivos. O funk é muito mais fácil, porque são artistas que vendem uma realidade de vulnerabilidade social vinculada à periferia, então é mais natural apedrejar essas pessoas”, critica. "Esse cara sou eu", música do último álbum do cantor, carrega esse estigma ao retratar um homem obsessivo como "herói esperado por toda mulher". "O cara que pensa em você toda hora / Que conta os segundos se você demora / O cara que pega você pelo braço", canta Roberto.
“Isso se passa também nos Estados Unidos: o hip hop lá teve uma fase que foi muito agressivo e teve essa coisa de rappers famosíssimos que tinham uma coisa com o feminino muito, muito forte. E foram apedrejados, porque negros vêm da periferia. E aí os Beatles, ou outros artistas que fazem outras canções, saem um pouco sofisticados, e por isso mesmo são menos açoitados”, conclui.
A suposta “liberdade de expressão”
Dentro de toda a polêmica, o grito dos “injustiçados” ecoa: censura! Sobre isso, a cantora Karina Buhr é curta e grossa: “Há muitas nuances e compreensões e falta de compreensões e sentidos duplos em poesia, em qualquer tipo de arte. No caso da letra de ‘Surubinha de Leve’, minha opinião é: apologia a estupro não pode e pronto, tem que tirar do ar, tem que boicotar os shows do cara”, determina.
“Estamos vivendo uma mudança grande, deixando de lado tudo que é violento e tentando chegar em um lugar mais legal para todo mundo. Isso cansa, é chato sim, para todos. Muitas vezes poda a arte de alguém aqui e ali, muitos são incompreendidos e julgados injustamente, mas é o preço para que quem sempre esteve maltratado e à margem tenha voz e espaço. São quebras de costumes, tempo de se revisar palavras que são faladas, comportamentos tão antigos e naturais tendo que ser apagados. Isso é difícil sim, mas muito necessário”, argumenta a artista.
Para a jornalista Débora Cassolatto, a desculpa da liberdade de expressão é furada. "Liberdade de expressão é uma coisa, discurso de ódio, incitação a estupro de incapaz é outra. Em um país em que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos e 13 morrem diariamente por feminicídio, é uma questão de responsabilidade existir ações efetivas para mudar esse quadro", manifesta. "Por mais que exista a questão da criatividade e liberdade, deve existir também a consciência do mundo que vivemos hoje. Não estamos mais nos anos 1990. Você tem uma responsabilidade imensa pelo conteúdo que produz e o impacto que isso gera na sociedade", complementa.