LITERATURA

D. Pedro I compositor: livro valoriza pouco falado talento musical do imperador

Além do 'Hino da Independência', estadista compôs valsas e coros elogiados por musicólogos: 'Tinha total domínio das técnicas composicionais', afirma a autora Rosana Lanzelotte

Pedro I compondo o 'Hino da Independência', por Augusto Bracet (1922) Pedro I compondo o 'Hino da Independência', por Augusto Bracet (1922)  - Foto: Reprodução

Se ele lançasse seu primeiro single nos dias de hoje, provavelmente seria chamado de “nepo baby” nas redes sociais. Mas o fato é que D. Pedro I, filho de Dom João VI de Portugal e primeiro imperador do Brasil, foi também um compositor dedicado, apaixonado e, sim, respeitado por grandes nomes da música de seu tempo.

Foi muito mais do que o autor do “Hino da Independência” (conforme todos nós aprendemos na escola), produzindo coros, marchas e valsas. Em 1831, teve uma composição elogiada e executada por Gioachino Rossini no Teatro dos Italianos, em Paris — e com “grande sucesso”, segundo relato do próprio gênio da ópera.

Este lado menos conhecido de sua biografia ganha uma nova dimensão no recém-lançado “Já raiou a liberdade — D. Pedro I compositor e a música de seu tempo” (Capivara), da cravista e pesquisadora Rosana Lanzelotte. Fruto de quatro anos de pesquisas em bibliotecas pelo mundo, a publicação atesta um interesse recente dos estudiosos pelo trabalho musical do imperador.

Em 2022, durante a comemoração dos 200 anos da Independência, projetos como o Música Brasilis ajudaram a difundir partituras de suas composições, que ganharam também uma gravação da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais (o álbum “Pedro I of Brazil”).

Acordes
Por sua vez, as páginas de “Já raiou a liberdade” trazem QR Codes que levam aos áudios e/ou vídeos das composições. Juntamente com o livro, foi disponibilizado on-line o álbum “O amor brasileiro”, com obras para pianoforte do Príncipe e de seu mestre, Sigismund Neukomm, interpretadas por Lanzelotte.
 

— Por muito tempo, não havia gravações de referência — explica a cravista. — Isso também contribuiu para o desconhecimento de D. Pedro músico. Quando se trata do imperador, as questões políticas e pessoais são as dominantes na historiografia. Poucos historiadores conhecem música a fundo, e as biografias se limitam a enumerar os seus professores de música.

Além de investigar as composições de D. Pedro I, o livro ajuda a compreender a evolução musical do país no período. O futuro imperador cresceu cercado por grandes músicos convocados por seu pai, D. João VI. Este grupo incluía os seus professores Marcos Portugal (1762-1830), maior compositor português daquela época, e o austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858), aluno preferido de Joseph Haydn. Após a chegada da família imperial, em 1808, o Rio se tornou o maior centro de produção musical das Américas.

D. Pedro produziu a maior parte das obras que conhecemos hoje em seus tempos de discípulo de Neukomm, que desembarcou por aqui em 1816 e partiu de volta à Europa em 1821. “Compor era o que mais lhe aprazia”, disse Leopoldina a respeito do marido em uma carta aos familiares.

— Estamos agora colocando D. Pedro em seu devido lugar como compositor — afirma o maestro Julio Medaglia, que já executou peças do imperador. — Se observarmos sua escrita, veremos que é a de um profissional, não de um amador. Ele poderia ter tido uma carreira como compositor se não fosse imperador. Sua música estava relacionada com a vanguarda, não tinha nada a ver com o classicismo ou com o barroco mineiro.

Vale lembrar, segundo Medaglia, que a cena musical brasileira já florescia antes mesmo da chegada família real.

— Dom João VI chegou aqui e já foi assistir a um “Te Deum” na Catedral — conta o maestro. — Ele se impressionou com o que ouviu, com a informação musical que havia aqui.

Acervo disperso
O Brasil guarda importantes partituras de D. Pedro I. Quatro estão na Catedral Metropolitana, no Rio. Há uma versão orquestral do Hino da Independência no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e uma cópia da “Abertura da Independência” no arquivo da Orquestra Lira Sanjoanense.

Mas havia muito material disperso garimpado por Lanzelotte e outros musicólogos como David Cranmer, da Universidade Nova de Lisboa, que foi aos Açores recuperar a cópia de uma missa em homenagem ao Papa Leão XII. Outras ainda estão desaparecidas, como as primeiras peças de D. Pedro de que se tem notícia — seis valsas escritas em 1816.

Lanzelotte descobriu no acervo de Sigismund Neukomm a partitura de uma valsa não repertoriada pelo catálogo do austríaco e com elementos compositivos próximos de outras peças do príncipe. Tudo indica que a autoria é do discípulo, não do mestre.

— Antes de falar da qualidade da música, devemos aplaudir o estadista que usou seu talento musical para valorizar a nação brasileira — diz a cravista, que nem por isso deixa de elogiar o talento do imperador. — Percebemos um total domínio das técnicas composicionais da época. A escolha das tonalidades, às quais eram associados sentimentos, e também do uso da orquestração para ilustrar o texto mostram que ele conhecia e usava recursos retóricos para reforçar as intenções.

Um exemplo aparece no “Credo”, aquela que é, segundo Lanzelotte, a sua obra litúrgica mais notável.

— Quando o texto se refere a Deus como “criador de todas as coisas visíveis e invisíveis”, para reforçar esta última palavra a orquestra cessa e o coro canta a capela, em pianíssimo — explica ela.

A obra foi gravada em 2022 pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, com regência de Fabio Mechetti. Para o maestro, não faltaram domínio e competência para D. Pedro, ainda que ele estivesse longe da verve criativa e melódica de gênios como Mozart e Rossini:

— A música dele tinha conexão com o estilo da época, em que os líderes de estado valorizavam a cultura e as artes. Tivemos dois imperadores (Dom Pedro I e II) que levaram a música a sério.

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