CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI

"Da Lama ao Caos": a modernidade feita à mão da identidade visual do álbum

Capa do álbum foi produzida por Helder Aragão (Dj Dolores) e Hilton Lacerda com poucos recursos tecnológicos, mas muitas ideias em ebulição

Capa do LP "Da Lama ao Caos", álbum de estreia de Chico Science & Nação ZumbiCapa do LP "Da Lama ao Caos", álbum de estreia de Chico Science & Nação Zumbi - Foto: João Santiago/Divulgação

A revolução estética provocada há 30 anos por "Da Lama Ao Caos" (1994), álbum de estreia de Chico Science & Nação Zumbi - eleito entre os "100 melhores discos brasileiros da história" em seleção da Rolling Stone Brasil, e como "melhor disco brasileiro dos últimos 40 anos", pelo jornal O Globo - também está presente na sua identidade visual, produzida por Helder Aragão (Dj Dolores), em parceria com Hilton Lacerda, em um momento de poucos recursos tecnológicos, mas de muitas ideias em ebulição.

Na época, os dois assinavam seus trabalhos gráficos e audiovisuais como estúdio Dolores e Morales. “Eu e o Hilton estávamos muito envolvidos com essa parte visual das bandas, da cena, então a gente fazia muito cartazes, fazia uns videoclipes experimentais, os primeiros videoclipes da galera, tal, eventualmente a gente chegou a dirigir algum show. Enfim, a gente pensava muito nessa parte extra música, o complemento visual”, recorda Helder.

Referências sonoras 
“Lembro de um sábado de tarde na casa do pai de Duda, que era namorada de Chico, a gente se encontrou pra ele oficialmente nos convidar para fazer a capa do ‘Da Lama ao Caos’, eu me lembro que foi um churrasco, onde aquele disco de Judd Madden, que tem umas bandas de hip hop e metal tocando juntas, tocou à exaustão”, lembra Dolores.

“Eles estavam curtindo também umas bandas que tinham um visual muito sinistro. Cypress Hill, por exemplo, aquela coisa escura, dark e tal. E era meio que aquilo que eles tinham em mente para a capa do 'Da Lama ao Caos'. Para a gente não fazia muito sentido, porque a Chico Science & Nação Zumbi é uma banda bastante solar, né? Uma banda que inspira sei lá, verão, campos abertos, luz”, avalia.

Nas conversas de criação, os dois chegaram na ideia de modernidade usando o caranguejo - símbolo do movimento manguebeat - como protagonista. “Tinha um conceito que se discutiu, era claramente algo que tivesse um discurso tecnológico, hi-tech, moderno. Moderno no sentido de ruptura de coisas, e a gente desde sempre sabia que usaria linguagens de quadrinhos porque era uma coisa que todo mundo gostava, todo mundo consumia bastante, estava tendo um boom interessante de HQs naqueles anos 90 e a gente acompanhava e se identificava com aquele tipo de narrativa gráfica contemporânea”, detalha Dolores.

O “obstáculo” gravadora
Quando a Sony assinou o contrato com Chico Science & Nação Zumbi, a ideia era produzir uma arte comercial para o álbum, nos moldes das bandas de axé baianas que faziam sucesso na época e esse conceito foi objeto de conflito com a gravadora. 

“Teve essa reunião que participamos eu, Hilton e Fred Jordão, com o marketing da Sony. Eles mostraram a capa do Asa de Águia, aquela guitarra enfiada na areia, com um pássaro em cima e tal. E também, obviamente, não era a cara da Chico Science & Nação Zumbi. O cara do marketing dizia ‘a gente está pensando em uma coisa mais ou menos assim'. E eu disse: ‘cara, mas não tem nada a ver. Você ouviu o disco, o material dos caras?’ E ele falou: ‘ouvi, é uma coisa com tambor, com percussão, né?’ Então, na cabeça dele, Chico Science e Nação Zumbi era igual a Asa de Águia”, relata Dolores em um vídeo no seu perfil do Instagram.

“Essa coisa da capa já foi o primeiro conflito. Chico insistiu para que a gente fizesse porque mantinha essa ideia de movimento, de cena, de que era um grupo, era o coletivo. Foi uma conquista incrível, cara, acho admirável. Alguém chega lá e bancar mesmo essa decisão, como ele fez”.

“A gente tentou fazer, inicialmente, uma capa mais sombria, com cores fortes, era aquele desenho do caranguejo, mas com menos cores. E aí, na negociação com a Sony, a gente acrescentou um pouco de cor para torná-la (bota aí com um milhão de aspas) ‘comercial’. Os caras simplesmente não entendiam. A galera da Sony não entendia Chico Science & Nação Zumbi, acho que nunca souberam vendê-los direito”, critica Helder. 
 

Encarte do álbum "Da Lama ao Caos, na versão Long Play (LP), tinha linguagem de HQ

Modernidade analógica 
Para representar o caranguejo futurista e conseguir passar uma ideia de alta tecnologia, a arte se utilizou de processos artesanais e de muita experimentação. A ideia inicial era produzir um encarte para LP e a linguagem dos quadrinhos completou a identidade visual. 

“A HQ é o que tá dentro da história. A capa você abre, tem a encarte e tem a história em quadrinhos dentro do encarte, bem grande. Tem a foto dos meninos com o fundo azul de um lado com as letras e, do outro lado, o HQ e o Manifesto Caranguejos com Cérebro”, descreve Hilton, que lamenta que o projeto não tenha sido adaptado corretamente para o encarte de CD e que esses elementos gráficos tenham ficado reduzidos e ilegíveis na nova versão.

“A história em quadrinhos tem várias vozes, vários narradores, uma história fragmentada que conta, sob o olhar de algumas pessoas do Recife, como a cidade estava sendo tomada por caranguejos e esses caranguejos vestindo roupa de caboclo de lança. Era meio uma visão que a gente tinha, a gente estava andando na calçada na Boa Vista e pensou “e se todo mundo usasse roupa de caboclo de lança, se pegasse ônibus, andasse pela Conde da Boa Vista daquele jeito? Tem um dos quadrinhos meio que traz essa ideia, a pessoa se transforma em caranguejo e caranguejo caboclo de lança. Era essa visão exagerada, metafórica, do que a gente esperava que acontecesse e tomassea a cidade do Recife. Isso de fato aconteceu, mas demorou muito tempo, não foi tão imediato quanto a gente imaginava”, relata Helder.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Cores e fragmentos
“As imagens coloridas do pessoal da banda que tá no lado do encarte, acho que tentava trazer essa alegria e essa coisa solar que, não sei, acho que os meninos também não gostavam muito dessa coisa muito forte de cor chapada, exatamente por ser alegre demais, mas acho que tinha a ver com o espírito da banda, acho que refletia bastante, o espírito da banda naquele momento, pelo menos”, descreve Dolores.

“O resultado é graficamente interessante mas, na verdade, é uma gambiarra. Ela parece uma construção de alguma coisa, mas é feita a partir de xerox e sobreposições de xerox, que vão se colorindo, brincando com as cores”, conta Hilton.

Gambiarras possíveis
“A gente não tinha recursos tecnológicos. Eu recortava, montava e colava. A gente tinha o conceito do caranguejo poderoso. Fred Jordão fez uma foto magnífica e aí a gente saiu processando essa foto usando máquina de xerox, uma coisa que nem existe mais hoje em dia. Portanto, a capa tem que parecer mais hi-tech, mais tecnológica do que realmente era, porque basicamente foi feito com xerox, usando scaner e impressora de baixíssima resolução que era o que tinha na época. Mas acho que ela inspira o futuro, ou, para usar a palavra de hoje , ela é retrofuturista”, define Helder.

Após terminarem a parte gráfica a partir de bricolagens com xerox, mais um desafio precisava ser superado: colorizar o projeto. “Mabuse tinha um computador com algum recurso gráfico e a gente fez as cores nesse computador super antigo (eu nem me lembro mais do nome do modelo, mas era um que veio antes do PC, imagina só…)”, conta Helder. E depois de colorido o projeto precisava ser impresso”, relata Dolores. 

O desafio, além de finalizar a arte, era imprimir em boa qualidade para enviar à gravadora. “Então, a gente procurou uma agência de publicidade, a Ítalo Bianchi, eles tinham uma impressora de cera colorida. E acreditem: eles deixaram a impressora trabalhando durante a noite e foram seis horas para imprimir um layout, que era um pouco maior do que a capa do CD, para o pessoal da Sony aprovar e para os meninos da banda aprovarem”, recorda Helder.

“Massa a gente ver a produção do disco na mão do que a gente entende como sendo essa grande cooperativa cultural que era o mangue, né? Só o fato de ter esse ciclo todo, não só a música, mas na produção da capa e dos shows, e isso tudo com a música fazendo parte de um mesmo discurso, né? E isso fez um sentido absurdo com a linguagem do quadrinho associada. Isso é fantástico!”, comenta o artista visual H.d. Mabuse.

Acompanhe a sequência do especial "Da Lama ao Caos 30 anos" em "Manguebeat rompendo fronteiras".

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