CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI

"Da Lama ao Caos": o legado do álbum para além da música

Disco provocou, há 30 anos, uma quebra de paradigma que não se via desde o Tropicalismo, no final dos anos de 1960

Chico Science (centro), com a Nação ZumbiChico Science (centro), com a Nação Zumbi - Foto: Fred Jordão/ Divulgação

Mesmo depois de três décadas de lançado, “Da Lama ao Caos”, álbum de estreia de Chico Science & Nação Zumbi, continua atual e influenciando gerações. É um marco de uma revolução estética que não aconteceu apenas na música, mas no comportamento e na maneira de pensar o mundo. Uma quebra de paradigma que não se via desde o Tropicalismo, no final dos anos de 1960.      

Dois anos antes do lançamento do disco, que aconteceu em abril de 1994, era divulgado o manifesto "Caranguejos com Cérebro", escrito pelo jornalista e músico pernambucano Fred Zero Quatro, fundador da Mundo Livre S/A, uma das bandas que integravam o que viria a se chamar movimento Manguebeat, que apresentava os conceitos de uma nova articulação artística que faria o Recife, a "Manguetown", ser referência no mundo.

"Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, videoclipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown”, narra trecho do manifesto. 

Ouça o disco completo:

Crítico e atemporal
Os temas trazidos pelo álbum “Da Lama ao Caos” tocam em feridas sociais que permanecem abertas até hoje. A fome, a miséria e a desigualdade que habitam na cidade do Recife e milhares de metrópoles do planeta. Os “caranguejos com cérebro”, idealizados pelo manifesto e presentes como protagonistas da narrativa do álbum, trazem essa reflexão em forma de denúncia e de vontade de transformar esse estado de coisas. 

“Ele deixa o legado de uma cidade que passou três décadas vivendo aquela época e aquela música que até hoje está reverberando. Ainda aglutina o povo para ver, ouvir e para influenciar. Influenciou muito sociólogo também. Porque Chico falou do Josué de Castro e muita gente da classe média e muita gente da periferia que teve acesso à Universidade foi sociólogo por ter ouvido falar de Josué. Foi um disco que influenciou muito a juventude pernambucana e brasileira. É sensacional fazer parte desse legado”, pontua Gilmar Bolla 8, membro fundador da banda.



"O disco permanece atemporal. Poderia ser lançado hoje e ainda seria o novo. Se alguém tocar, por exemplo, Coco Dub para um gringo que ignora o disco, ele pira. O Maracatu de Tiro Certeiro é uma música que parece ter sido feita agora, refletindo a violência atual do país", opina o jornalista e crítico José Teles, que cita a importância desse movimento em seu livro “Do frevo ao Manguebeat”.

Grito futurista
“O Da Lama ao Caos” é a nossa fundação, nosso primeiro grito ali, de Chico Science e Nação Zumbi. Então, ele tem um peso muito grande. Grandes artistas, consagrados no Brasil e do mundo, falam bem e escutam até hoje esse disco. E a cada audição você escuta uma coisa nova. Ainda tem esse frescor, acho que ele vai falar por muito tempo ainda”, comenta Jorge Du Peixe, vocalista da Nação Zumbi.

“Um legado que não é só musical, que reverbera em qualquer tipo de atividade artística. É esse acreditar e olhar para o seu entorno, olhar para o seu quintal. É você extrair o melhor que você tem da sua própria casa, no caso, a cultura pernambucana”, avalia a jornalista Lorena Calábria, autora do livro “Chico Science & Nação Zumbi - Da Lama Ao Caos”. “Além do legado sonoro, deixa uma ideia de que aqui no Brasil a gente tem coisas muito interessantes e o quão importante é você ter personalidade e não ficar copiando ao pé da letra bandas lá de fora, eles chamaram a atenção exatamente porque fizeram uma coisa super original. É um disco atual até hoje”, elogia Liminha, produtor musical do álbum.

Mistura e diversidade
"Musicalmente falando, é um trabalho muito rico que transa muitas ondas sonoras, do rap ao heavy metal, do coco ao dub, do maracatu ao rock nacional, do underground ao mainstream. Essa turma digeriu e sintetizou muita coisa em uma única obra, é impressionante! E ele ainda dialoga muito com nossa contemporaneidade com toda a certeza e vai dialogar por muito tempo, não há limite para obras assim", descreve o professor e pesquisador da UFPB Ricardo Maia Jr. 

"Por isso, é um disco claro dos anos 1990, como qualquer obra do seu tempo, mas que vai além dele, pois o álbum tensiona os limites da cultura – apesar de ter virado um clássico, é um cânone de vanguarda. Soa como um paradoxo, mas é um fato!", completa o docente, que estudou o Pós-Mangue em sua tese de doutorado.

“Eles abriram a porta pra um pop brasileiro mestiço, preto, que até então não tinha. Veja todas as bandas da década de 80, começo de 90, eu não tô julgando as bandas, mas eu tô julgando as gravadoras. As gravadoras montavam bandas que pareciam bandas europeias ou americanas”, apontou Helder Aragão, dj, músico e artista visual.



A FAIXA PREFERIDA DE CADA ENTREVISTADO:

José Teles, jornalista e crítico musical
“Maracatu de Tiro Certeiro”

"Tem letra de Jorge do Peixe e foi inspirada em um personagem de quadrinhos. A música é perfeita! a violência da letra em sintonia com a interpretação de Chico e Jorge, como dois emboladores. A banda toca ensandecida… Quando a música para, você sente que está com o coração acelerado. Pelo menos foi o que senti quando escutei pela primeira vez”

Jorge du Peixe, vocalista da Nação Zumbi
“Coco dub”

"Embora o disco tenha já uma linguagem universal, usando vários elementos, não só dos folguedos locais e do mundo, Coco Dub faz uso ali de elementos de dub, da psicodelia jamaicana. É pulsante, dançante e com alguns usos de periférico, de sample também. Eu acho que é uma das músicas que, onde quer que ela toque, ela fala por si só e tem uma dinâmica que aprecio muito"

Paulo André Pires, produtor cultural
“Lixo do mangue”

“Um dia cheguei no ensaio e os caras mostraram uma música, Lúcio puxou e a galera fazendo as batidas, aí eu falei: "caralho, velho! Parece um thrash metal do mangue! Essa música é foda! Tem que tá no disco, para mostrar essa visceralidade de vocês!", que “Da Lama ao Caos” já mostra, mas dá umas quebradas, e essa vai pesada até o final. Aí, eu falei: ‘Chico, bota ‘Lixo do Mangue’, velho!’, porque aí eu expliquei: o thrash, não o trash de lixo, mas essa música é mais pesada, mais obscura assim... o pior do mangue é o lixo, é como se isso fosse um lixo do mangue, aquela coisa pesada, carregada”.
Gilmar Bolla 8, membro fundador da Nação Zumbi
“Risoflora”

Gilmar Bolla 8, percussionista e membro fundador da Nação Zumbi
"Risoflora"

"Escolho Risoflora porque é uma música romântica. É uma música que é um roqueiro cantando. E é uma poesia que fala de um pescador, né? Um cara que foi preso, mas ele prometia mais não ir mas o caritó. E algumas partes da poesia foi de um fato verídico"


Ricardo Maia Jr, professor e pesquisador da UFPB
 “Monólogo ao Pé do Ouvido (vinheta) / Banditismo por uma Questão de Classe”. 

“Sintetiza tudo que vamos escutar ao longo do disco e é um manifesto de atitude, de percepção de mundo e da nossa necessidade de recontar a história nacional sobre a ótica dos que foram e ainda são escravizados, explorados, marginalizados, e assassinado todos os dias – que são os nossos verdadeiros heróis. Isso é muito atual!"

Helder Aragão (Dolores), Dj, produtor e artista visual
“Coco dub”

“É uma faixa que até hoje eu costumo incorporar no meu set, quando eu toco como DJ, porque ela tem uma estrutura mesmo de música eletrônica, que dá pra você blocar, loopar em umas partes e mixar com qualquer coisa, ela é fácil de afinar, então dá pra você botar no tempo e afinar bem direitinho. É uma música muito contemporânea, a sonoridade dela também é incrível, o beat, enfim, grande faixa”.

Hilton Lacerda, cineasta e roteirista
“Maracatu de tiro certeiro”

“Acho que uma música que é muito marcante para mim nesse disco. Eu e Helder fizemos um clipe dessa faixa como “Dolores e Morales”. Eu era muito apegada, até hoje eu gosto bastante da música

H.d. Mabuse, designer, artista visual e músico
“Lixo do Mangue”

“Não por qualquer questão saudosista mas, muito pelo contrário, pelo significado que levou a agora, no presente, a música parecer um rolo com compressor passando por todo um simbolismo do novo Recife, todo o simbolismo de uma cidade que ficou entregue, depois de tudo que a gente falou dessa história de mangue, para essa corrida mobiliária”

                                                                                                                                                                                

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