De vida reclusa, Akira Toriyama popularizou mangás muito além do Japão com "Dragon Ball"
Enquanto criava uma das sagas mais populares dos quadrinhos e da TV mundial, o autor mantinha uma vida reclusa em Nagoya, ao ponto de lenda sugerir que uma estrada foi aberta para facilitar suas idas a Tóquio
"Oi, eu sou o Goku". Se você conhece esta frase, é porque o trabalho de Akira Toriyama, morto no último dia 1º, com um hematoma subdural agudo, aos 68 anos, ultrapassou as fronteiras do Japão e ganhou o mundo numa época em que isso não era tão simples.
Além de "Dragon Ball" (1984-1995), o mangá (história em quadrinhos japonesa) que marcou sua carreira e tornou o personagem Goku um ícone da cultura pop mundial, o artista japonês deixa um legado de mais de 30 trabalhos nas publicações do país.
Se Osamu Tezuka, o pai do mangá, marcou a segunda metade do século XX com seus trabalhos, Toriyama foi o responsável por sucesso avassalador nas revistas shounen, destinadas ao público masculino de pré-adolescentes e jovens, entre 1980 e 1990. Em seu estilo de escrita, o autor carregava um humor leve, brincalhão, ao estilo japonês.
Visualmente, optava por traços simples, mas adotou um estilo de quadrinização dinâmico e inovador para a época. As cenas envolvendo artes marciais, temática muito presente em suas obras, brincavam com ângulos, movimentações dos personagens e com o olhar do leitor.
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Em "Dragon Ball", obra inspirada no romance chinês "Jornada ao Oeste", do século XVI, Toriyama abordou a história de Son Goku, um jovem artista marcial que atravessava o mundo em busca das esferas do dragão (que dão título à série), objetos mágicos capazes de realizar desejos. No caminho, Goku reunia aliados e enfrentava os antagonistas mais variados, entre mestres de artes marciais, andróides, organizações secretas e demônios.
Vida reclusa
A obra, adaptada para anime (animação) em 1986, dois anos após o lançamento, se tornou um dos maiores sucessos dos quadrinhos e da TV japonesa. Publicada na revista semanal "Weekly Shounen Jump", a HQ ajudou as vendas da publicação a atingirem seu patamar mais alto da história, com 6,5 milhões de cópias em circulação semanalmente.
À medida que ficou mais popular, a obra ganhou um direcionamento mais sério e violento, focada em lutas e num universo mais espacial. As duas fases de "Dragon Ball" servem até hoje como inspiração para novas gerações de autores, os mangakás.
Numa época em que a internet era mais ideia que realidade e as distâncias físicas e de linguagem eram barreiras reais para se acompanhar produtos japoneses, a obra de Toriyama se impôs mundialmente, muito também pela ajuda da animação. Até hoje, "Dragon Ball" move fãs pelo mundo, pauta eventos de mangá e anime e vende produtos. É improvável entrar numa loja de departamentos e não esbarrar num produto inspirado no Goku.
A obra segue tendo continuações em quadrinhos, animações e filmes, já sem tanto envolvimento do criador original. Hoje, é o quarto mangá mais vendido da história, com 260 milhões de cópias pelo mundo, somados seus 42 volumes. No Brasil, foi publicada pelas editoras Conrad e Panini, e tem traduções em mais de 50 países do mundo.
"Eu fui um daqueles que assumiram o bastão desde os dias em que ler mangá era considerado coisa de bobo", escreveu o amigo Eiichiro Oda, autor de "One Piece", o atual mangá mais vendido da história, em mensagem de despedida. "Ele criou uma era em que adultos e crianças podiam desfrutar da leitura de mangás. Nos mostrou o sonho de que os mangás poderiam se popularizar pelo mundo. Era como assistir a um herói avançando. [...] Que o paraíso seja o mundo alegre que ele idealizou."
No Japão, a rotina de um mangaká, em especial a daqueles que desenham e escrevem para revistas semanais, é altamente exaustiva. Muitos se aposentam ou seguem trabalhando com problemas de saúde significativos. Alguns artistas tendem a ser pessoas reclusas em seus estúdios, mesmo após o fim de seus trabalhos, o que não foi diferente com Toriyama, que aparecia pouco aos olhos do público e em eventos, mantendo uma vida discreta em Nagoya, sua cidade natal. Há uma lenda que diz que facilitar a logística de Toriyama com as editoras em Tóquio foi a principal motivação por trás da construção de uma estrada próxima de sua casa que vai até o Aeroporto de Nagoya.
Além de Dragon Ball, o segundo mangá mais bem sucedido de Toriyama foi "Dr. Slump", publicado quatro anos antes, em 1980 (até 1984). Na história bem-humorada, em 18 volumes, o leitor acompanha a robôzinha Arale Norimaki num mundo de objetos e animais antropomórficos e a dificuldade da inocente protagonista em entender os pormenores do mundo em que foi lançada. Foi com um pouco da simplicidade e inocência de Arale e com a sagacidade curiosa de Goku que Akira Toriyama conquistou o mundo dos quadrinhos no Japão e no planeta. Um gênio da leveza, um gigante da arte.