Dick Farney, 100 anos: precursor da bossa nova foi erudito e popular
Músico é conhecido como o Sinatra brasileiro pelos fãs
Um baú lotado de memórias resiste ao tempo. Lá dentro estão as luzes dos palcos, os sons do violino, do piano e até da viola caipira. Estão as influências da família imersa em arte e até os sons de guerra. Misturam os ritmos e as amizades com Frank Sinatra, Carmen Miranda, Nat King Cole, João Gilberto... O cantor, compositor e multi-instrumentista brasileiro Dick Farney (apelido do carioca Farnésio Dutra e Silva) fez carreira internacional, a partir da década de 1940, com um vozeirão em ternura. Jeitão de jazz com bossa nova. Ele, que nasceu em 14 de novembro de 1921, completaria o seu centenário neste domingo (14). Um 'Sinatra brasileiro', dizem os fãs. Morreu em 1987, enquanto ainda trabalhava intensamente. Deixou legado, pelo menos 45 discos (não contando os estrangeiros), 395 músicas gravadas e um baú de lembranças que não deixam sua história ser esquecida.
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O baú existe de verdade, com anotações, músicas e imagens que o organizado músico deixou e está sob a guarda da sobrinha e afilhada do artista, a pesquisadora e pedagoga Mariângela Toledo, que assumiu a responsabilidade de garantir que a história do consagrado artista não deixasse jamais de ecoar. Ela, que organiza as memórias e mergulhou na história do artista, prepara uma biografia com mais de 400 páginas a ser publicada em 2022. A pandemia atrapalhou os planos de levar o livro Alguém como Tu ao público no ano do centenário do artista. Revelações que constam na obra mostram o desassossego e a intensidade dele, fascinado pelo trabalho e pelas estratégias para produzir sem parar, ainda que fosse de família abastada.
“O título do livro não é somente por causa da música que ele canta. Ele era único mesmo. Um personagem incrível”, explica Mariângela. Ela quer fazer justiça à história singular do músico, que fez carreira internacional, teve programa nos Estados Unidos, foi o precursor do samba-canção e da bossa nova, mas que hoje, na avaliação da sobrinha, não é um nome tão reconhecido como outros artistas brilhantes.
Desde criança
Quando ainda era apenas o pequeno Farnésio, aos três anos de idade, teve o primeiro contato com o violino. Ele passou a receber as aulas do pai, Eduardo Dutra, empresário e músico, e que teria ainda outro filho artista que virou astro, o ator e músico Cyll Farney (apelido do irmão Cilênio). Dick, segundo registra a pesquisadora sobrinha, teve origem porque Farnésio, com oito anos, gostava de imitar o cantor norte-americano Richard Dick Powell.
Depois, descobriu o piano, ainda criança, e, em seguida, o canto. “Nunca passou por um conservatório. O que ele aprendia era em casa”. Mariângela identifica que ele foi preparado para a música clássica. Foi com esse norte que foi trabalhar nos Estados Unidos. Encantou no país estrangeiro diante da facilidade de lidar com o idioma inglês. “Ele cantava nos shows e nas rádios e, diante da ausência de sotaque, havia quem acreditasse que ele não era brasileiro”.
Eis um cantor
Com 17 anos de idade, Farney foi estudar no Instituto Nacional de Música, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Ele passou em primeiro lugar e foi estudar música com especialização em teoria musical e solfejo [exercício de leitura das notas de uma partitura]. Aqui ele já estava preocupado em aperfeiçoar o canto”. Na avaliação da biógrafa, a mãe dele, Iracema, é quem descobriu que Dick era um cantor também.
Uma história na década de 1940 pouco conhecida no Brasil, segundo explica a pesquisadora, é que Dick Farney se alistou no Exército Brasileiro e incorporou como soldado. Por muito pouco, não foi para a 2ª Guerra Mundial. O pai, desesperado com a pretensão do jovem, recorreu a amigos para que ele não fosse. O soldado acabou, contrariado, trabalhando nos bastidores no Rio de Janeiro, mas em contato com os militares que embarcariam para a Itália. Mas, mais tarde, o som dele chegou aos combatentes.
Ele é citado nos Estados Unidos até hoje no memorial da 2ª Guerra. “A Marinha americana, diante de problemas emocionais dos combatentes, promoveu a produção de um disco voltado para esses militares em áreas de conflito. A voz de Dick Farney foi escolhida para esse disco [o Victory Disk, disco da vitória em tradução literal].” Foi distribuído perto de um milhão de discos. Imagina o Dick Farney e Frank Sinatra, dois grandes expoentes no auge do sucesso gravando juntos”. Quem escolhia os artistas para serem gravados eram soldados. As músicas de Dick foram escolhidas sete vezes pelos militares para compor os materiais.
Copacabana
Até os 18 anos de idade, ele foi bastante ligado à música clássica. A erudição (nem o gosto particular do pai) não o impediram de experimentar um jeito brasileiro de viver a música. No início dos anos 1940, foi crooner no Cassino da Urca na Orquestra de Carlos Machado. Aos 25 anos de idade, no ano de 1946, ocorreu um marco para a vida de Dick Farney e para a música brasileira. Ele gravou Copacabana, a convite de Braguinha, compositor da histórica canção, o que vai consagrar o gênero do “samba-canção”. O jeito com que ele cantou fez com que críticos e público descobrissem que estariam diante de algo diferente. “Naquela época, a pessoa ligava no rádio e ouvia ou o samba de morro ou música tipo opereta ou a música sertaneja. Quando ele gravou Copacabana (uma das raríssimas letras da época que não tratavam de pessoas especificamente, mas de um lugar), com apoio de violinos, tratou-se de um estilo de música que não tinha nada parecido no Brasil. As revistas da época nominaram que seria um samba-canção. É considerado o início da bossa nova. O samba-canção é a raiz da bossa nova.”
Com a fama, entre 1947 e 1948, foi para os Estados Unidos e era participante fixo de programa da NBC. No Brasil, ele sabia que o mercado também havia se aberto ao talento dele. Os músicos que abraçaram o estilo eram os astros daqueles anos dourados. Com direito até a falsas rivalidades entre eles, como ocorreu no caso entre Dick Farney e Lúcio Alves, astros da gravadora Continental, que eram muito amigos. “Um ficou na casa do outro quando moraram em Nova York. Entre eles, não havia nenhum estranhamento. Muito pelo contrário. Mas, a gravadora pediu que Billy Blanco e Tom Jobim compusessem algo que pacificasse os fã-clubes”, explica Mariângela Toledo. A música Tereza na Praia, obra-prima da música brasileira, teve os vocais divididos entre os ditos rivais. “Essa música inclusive foi composta lá na casa do tio Dick e traz a história de dois amigos que namoraram a mesma moça. Só que os dois não brigam por ela e descobrem que ambos foram enganados.”
Astro
Em 1959, ele tinha um programa na TV Record, o Dick Farney Show. Em 1965, esteve na nova TV Globo, com o programa Dick e Betty (a atriz Betty Faria). Dick Farney fazia versões de músicas estrangeiras, compunha e cantava para filmes no cinema e tinha intensa atividade em casas de show.
Confira neste domingo (14) um especial da Rádio MEC sobre Dick Farney no programa Baú Musical
Primeiro no Rio de Janeiro, depois em São Paulo. “Ele não parava de forma alguma. Apesar de ser um astro, era uma pessoa discreta e tímida. Era um homem muito carinhoso com a família”, diz a sobrinha que o conheceu depois que ele casou com a tia, Zean, na década de 1970. Para ela, inclusive, ele pediu ao amigo Billy Blanco que compusesse a música A Aeromoça, profissão da esposa quando o casal se conheceu. “TV, rádio, casas de espetáculo… a rotina de Farney era estar no palco”, conta. Inclusive, até na década de 1980, quando a família pedia que ele diminuísse o ritmo. Com 65 anos de idade, foi internado após um show em que sentiu dor e dificuldade de respirar. Morreu de um agravamento de um edema pulmonar.
Fãs
Dick Farney deixou uma legião de fãs que, hoje, se procuram na internet para resgatar músicas, histórias, imagens e sons do astro. Entre os principais grupos de devoção ao artista, uma das páginas (hoje com mais de cinco mil membros), reúne pessoas de diferentes idades e celebram também o tempo prodigioso de canções daqueles anos dourados.
A curiosidade é que esse grupo foi iniciativa de um jovem professor de história e designer gráfico. O carioca Rodrigo Manhães, de 35 anos, aproximou-se da obra de Farney a partir da influência da mãe. “Hoje pouco se fala do Dick Farney. Desde criança, eu ouço Sinatra, Dolores Duran e ele, entre outros. Eu particularmente gosto muito dele cantando as músicas do Billy Blanco”. Entre as músicas preferidas de Manhães estão Sinfonia do Rio de Janeiro, e também Copacabana e Tereza na Praia. “Ele tem maciez na voz e toca piano magistralmente.”
“Eu e minha esposa gostamos dessas obras vintage. Aprecio muito o jazz. Como eu gostava desse estilo, também passei a admirar o ‘Sinatra Brasileiro’, que é o Dick Farney”. Para ouvir mais do que o LP na vitrola, resolveu formar o grupo no Facebook. “Eu não imaginava que ia crescer tanto. Todos os dias pelo menos 100 pessoas entram. A cada post, recebemos muitos comentários. Muitos são de idosos que testemunham ter assistido a shows e falam de saudade”. Nostalgia, baús remexidos e troca de lembranças para que, de novo, possam preservar a memória do artista.
Ouça Dick Farney interpretando algumas de suas canções na playlist abaixo: para ouvir e para parar, clique na foto do cantor (agradecimentos à Rádio MEC pela pesquisa dos áudios):