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Diretor de ''A Sociedade da Neve'' descartou cenas de cérebros retirados de cabeças cortadas

Indicados ao Oscar pela maquiagem do filme, David Martí, Montse Ribé e Ana López-Puigcerver, falam sobre seu trabalho para recriar deterioração de corpos

Desastre de avião que chocou o mundo há 50 anos é contado com apoio de sobreviventesDesastre de avião que chocou o mundo há 50 anos é contado com apoio de sobreviventes - Foto: Divulgação

Por trás da maquiagem de 'A Sociedade da Neve': "Bayona descartou cenas de cérebros retirados de cabeças cortadas porque as achou insuportáveis"

— O Jota (apelido do diretor J. A. Bayona) sempre gosta de gravar todas as possibilidades, ter o material pronto para a montagem final. Então fizemos muitas coisas para ele. Desde comer tutanos até cortar cabeças para tirar cérebros, de tudo. Nós dizíamos a ele: 'Mas isso é necessário?'. Ele queria tudo — conta Martí, destacando que esses planos explícitos estão nas primeiras edições, mas não aparecem na versão final.

— Quando perguntei por que havia retirado nosso trabalho, ele mesmo disse que achou insuportável de ver. 'Se as pessoas vissem isso, sairiam do cinema'.

O trabalho Martí e de sua sócia no estúdio DDT, Montse Ribé, consistiu em replicar como e onde os corpos foram atingidos, como eles ficaram após o acidente e durante o processo de sobrevivência, ou como os cadáveres se pareciam à medida que os dias passavam.

No estúdio, foram fabricadas réplicas hiper-realistas de corpos inanimados, torsos de personagens vivos, cabeças cortadas, dentaduras danificadas, maçãs do rosto postiças para marcar rostos cadavéricos, orelhas falsas (aquelas usadas por Tomás Wolf como Gustavo Zerbino) e pernas raquíticas com pelos inseridos à mão fio a fio pela equipe. Sim, são aquelas que protagonizam uma cena crucial quase no final do filme e que quase ninguém imagina que são totalmente artificiais.

A equipe de Martí e Ribé investigou relatórios médicos, relatos dos envolvidos e material da época para entender o que aconteceu durante e após o acidente de 1972, no qual 16 homens sobreviveram por 72 dias após o impacto de seu voo, o 571 da Força Aérea Uruguaia, contra a cordilheira dos Andes.

— Uma das sensações mais satisfatórias deste trabalho foi quando ouvi o murmúrio no cinema quando os sobreviventes se despiram para tomar banho e apareceu nossa perna em primeiro plano — destaca Ribé.

E quem viu o filme, seja em casa ou na tela grande, entende o motivo desse suspiro de espanto coletivo. Sem faunos ou criaturas mágicas, mas com muito hiper-realismo, seu objetivo era fazer com que o espectador não fosse consciente de seu trabalho. Algo que normalizasse tanto a deterioração física dos sobreviventes quanto o aspecto dos cadáveres que timidamente aparecem em cena. Curiosamente, Martí não queria trabalhar em "A sociedade da neve".

— Eu não queria fazer outro melodrama com o Jota. Já tínhamos feito juntos 'O impossível' e 'Um monstro vem me ver', um filme que foi especialmente difícil porque minha mãe morreu de câncer e para mim foi um tema delicado. Eu estava com vontade de fazer uma comédia, uma aventura, algo assim. Então, quando ele confirmou que no final ia encarar 'A sociedade da neve', com o qual estava lidando há anos, eu olhei para ele e disse: 'Mas o que você está me dizendo!'" — lembra o técnico de maquiagem em uma videochamada de seu estúdio em Barcelona.

No final, ele aceitou. Ainda bem. Os nomes de David Martí e Montse Ribé são os que aparecem destacados na dupla indicação (no Prêmio Goya e no Oscar) que ambos compartilham com a equipe da maquiadora Ana López-Puigcerver. Na DDT, eles já conheciam os métodos do diretor barcelonês, mas Ana López-Puigcerver estava estreando com J. A. Bayona. A maquiadora madrilenha chegou ao filme na primavera de 2021 através de uma das produtoras, Sandra Hermida, com quem já havia trabalhado.

— Ela me ligou e disse que tinha um projeto muito bonito que eu iria adorar. Ela não estava errada — relata do outro lado do telefone, dos corredores de um hotel central de Madrid, enquanto trabalha na quarta semana de filmagem do último filme de Daniel Guzmán. Não para. Sua vida é marcada pelo cinema. Seu marido é diretor de fotografia, seu filho é operador de câmera e sua irmã, Belén, faz parte de sua equipe, focada no trabalho de cabelo.— Em A Sociedade da Neve é muito difícil saber onde começa uma maquiagem e onde termina outra — esclarece sobre o que a separa da DDT.

Sua função era dar continuidade lógica e cronológica à degradação física e capilar dos sobreviventes — ela criou o efeito de "guaxinim" nos olhos de Fernando Parrado após o coma. Os relatórios médicos garantiram que deveria ser um efeito totalmente simétrico, como visto no filme. E também descobrir que tipo de barba cresce a 4 mil metros de altura ("tem gente que não acredita que mal cresça, mas é porque no Uruguai muitos homens são sem barba") e entrar em contato com os sobreviventes e seus familiares para replicar seus penteados. Ela até entrevistou Laura Surraco, a parceira de Roberto Canessa, para descobrir como fazer o delineador e como aplicá-lo na cena da missa.

— Os atores emagreceram muito, e tivemos o apoio da DDT com suas próteses, mas o mais complicado foi normalizar essa passagem do tempo e as consequências no corpo dos vivos, para entender as elipses temporais — esclarece essa nova estrela do Instagram.

O interesse gerado pelo filme fez com que seus vídeos de filmagem, como o da degradação física de Enzo Vogrincic (Numa Turcatti no filme), se tornassem virais em questão de horas. López-Puigcerver não esperava a indicação ao Oscar. Na DDT, também não estavam confiantes. Martí e Ribes acreditam que "Maestro", apesar do acalorado debate nas redes e das reclamações sobre a prótese nasal exagerada de Bradley Cooper, poderia levar o prêmio em sua categoria.

López-Puigcerver, que vai estrear no tapete vermelho do Dolby de Los Angeles, já recebeu mensagens de estilistas americanos oferecendo-se para vesti-la.

— Não sei se nos darão ou não, mas tenho certeza de que meu traje vem de Madri. E para escolhê-lo, terei a melhor ajuda: todas as minhas amigas das equipes de figurino — conclui.

Mais uma prova da outra comunidade que ninguém vê, mas que também foi tecida, graças a "A sociedade da neve".

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