Disco de Beyoncé chama atenção para origens múltiplas e multirraciais do country
Lançado esta sexta-feira, 'Act II: Cowboy Carter' faz acerto de contas com aquele que é equivocadamente chamado de 'o mais branco dos ritmos americanos'
Quem reclamou quando, em 2016, Beyoncé fez uma canção country agora vai ter que engolir um álbum inteiro. Oito anos depois de ela ter recebido reações hostis no Country Music Awards, a maior premiação do chamado “mais branco dos ritmos americanos”, a ponto de a organização excluir das redes a apresentação da música “Daddy lessons”, a cantora lança hoje o disco “Act II: Cowboy Carter”. Nele está o single “Texas Hold’em”, estourado desde 11 de fevereiro e primeiro lugar da parada Hot Country Songs, da Billboard, o que foi um feito inédito para uma mulher negra.
Além de uma conquista pessoal, a incursão da diva pop nessa seara é uma cutucada no racismo e uma espécie de acerto de contas com a História. Como vários pesquisadores já vêm apontando há alguns anos, o country, associado aos espaços rurais do Sul e Oeste dos EUA, não foi criado somente por brancos. É som de negros e de outras etnias também.
—Musicólogos descobriram que as raízes do ritmo são múltiplas e multirraciais. Há influência do folk, do blues, da ranchera mexicana e da música havaiana — diz por email ao GLOBO Francesca T. Royster, professora da DePaul University, de Chicago, e autora do livro “Black country music” (literalmente “Música country negra”, lançado em 2022 e ainda sem edição brasileira).
O country, como gênero explorado comercialmente, surgiu nos anos 1920. Naquele tempo, ainda levava o nome de hillbilly, termo americano próximo do nosso “caipira”. Originário da região rural ao sul dos Montes Apalaches, na porção leste dos EUA, a sonoridade vinha de técnicas como a slide guitar e instrumentos como o violino, o banjo e a gaita. A presença desta última dupla é, inclusive, um forte indício da influência negra.
— O banjo, por exemplo, teve origem na África e era tocado por negros escravizados — explica Francesca.
Com carga pejorativa, o nome hillbilly deu lugar a country (“campo”) nos idos dos anos 1950, período em que a separação racial era lei no Sul dos EUA. Para gravadoras que aplicavam a lógica segregacionista em seus planos de marketing, country era música de e para brancos.
Adeptos do ‘nós e eles’
Mesmo com a Lei dos Direitos Civis de 1964, que pôs fim à segregação oficial, essa lógica do “nós e eles” continua viva para quem repete máximas como “o mais branco dos ritmos americanos” e tenta apagar a contribuição multirracial para o gênero musical.
Na contramão dessa crença, a pesquisadora Francesca T. Royster cita, por exemplo, Jimmy Rogers, conhecido como “o pai do country”:
— Ele aprendeu muito com artistas e operários negros que trabalhavam com ele nas ferrovias. O jeito de tocar guitarra chamado Piedmont Blues foi moldado por duas mulheres negras, Etta Baker e Elizabeth Cotten, que inspiraram Chet Atkins. E o guitarrista afro-americano Lesley Riddle influenciou profundamente o grupo branco The Carter Family.
Por falar em Carter, olha a texana Beyoncé Knowles-Carter (nome completo da diva) aí. Tão logo ela divulgou “Act II: Cowboy Carter” como o nome do álbum, houve quem fizesse ligação com a The Carter Family. Sucesso a partir de 1927, o trio (formado por A.P Carter; sua mulher, Sara; e a irmã dela Maybelle) é chamado de “a primeira família da música country” e considerado até hoje fundamental para o gênero. Mas pouca gente faz a conexão entre o trio e Riddle.
Para os fãs de Beyoncé, porém, a maior vencedora da história dos Grammys passou cinco anos produzindo o disco (como ela disse numa carta de apresentação divulgada há dez dias) para mostrar que, no country, também cabem outros Carters.
Em 2019, o cantor negro Lil Nas X lançou o hit “Old town road” em parceria com o cantor country branco Billy Ray Cyrus. A canção foi uma explosão sem precedentes no TikTok e entrou no Top Country 100 da Billboard, mas foi retirada da categoria sob alegação de não ter elementos suficientes para esta classificação.
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— “Old town road” era uma música que conectava country, trap e rap — diz Thiago Pereira Alberto, professor do programa de pós-graduação em Comunicação da UFF.
O pesquisador Thiago Pereira Alberto analisa a relação entre as músicas de Lil Nas X e Beyoncé:
— Beyoncé, agora, traz um argumento mais amplo para essa discussão por ser quem é. A música do Lil já foi um movimento muito grande, mas que não ficou nas paradas do country sob a justificativa de que ela não teria “estruturas suficientes”. Essa da Beyoncé conseguiu. Esse é o tamanho da discussão.
Todo o movimento de Lil Nas X, na visão da professora Francesa T.Royster, preparou terreno para o lançamento de Beyoncé:
—A música dele deu uma chance para muitos ouvintes, que se sentiam excluídos pelo ritmo, participarem e se divertirem. Contribuiu para todo um renascimento da consciência negra do country sobre música.
Beyoncé segue na mesma toada ao colocar no mainstream nomes do passado e presente que celebram o country multirracial. Em “Texas Hold’em”, o banjo ficou na conta de Rhiannon Giddens, fundadora da banda de country, blues e música antiga Carolina Chocolate Drops e vencedora do Grammy de melhor álbum folk de 2011. A faixa “Linda Martell show” é uma homenagem a Linda Martell, de 82 anos, primeira artista negra a fazer sucesso no ritmo.
Apesar de o country e a música sertaneja terem diferenças históricas e de sonoridade, têm em comum o caráter rural e estético. E pode colocar na lista também o fato de algumas contribuições serem esquecidas.
— O sertanejo está muito ligado a uma tradição de música indígena, com interlocução com ritmos latino-americanos como é o caso da guarânia no Paraguai — detalha Thiago.
Ele diz que o fato de hoje a maioria dos sertanejos que fazem sucesso no país ser branca não reflete a origem multirracial e cultural do gênero e reforça um processo de embranquecimento especialmente a partir dos anos 1990, com o sertanejo urbano e universitário.
O pioneiro João Pacífico
A título de exemplo, pioneiro das gravações nos anos 1920, João Pacífico (1909-1998) era neto de escravizados e de filho de uma escrava alforriada. Morreu em Guararema, no interior de São Paulo, sem homenagens de nomes famosos ou cobertura de mídia.
— Existe hoje uma aparente ausência, no imaginário sertanejo, de artistas negros — diz Thiago.