Documentário faz retrato afetivo de escola pública na preparação para o Enem
Filme de João Jardim acompanha cotidiano de estudantes no interior de Sergipe
Os alunos são convidados pelo professor a olhar dentro de uma caixa posta sobre a mesa. Um a um, eles se revezam e voltam a seus lugares com olhares ressabiados. "Cuidado para não se assustarem, podem se surpreender", brinca o docente.
No fundo da caixa tinha um espelho. A cena é uma das primeiras do documentário "Atravessa a Vida", do cineasta João Jardim, que tem duas sessões no festival É Tudo Verdade: na sexta-feira (25), às 21h, e no sábado (26), às 15h, em streaming a partir do site do festival (www.etudoverdade.com.br).
O Brasil acumula pesquisas acadêmicas sobre educação pública. São mais raros, entretanto, trabalhos que, como este filme, buscam tanta intimidade com a vida na escola e, sobretudo, com a juventude.
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Jardim volta ao tema da educação 15 anos depois do sucesso de "Pro Dia Nascer Feliz", premiado documentário de 2005 que retrata estudantes e escolas pelo país. O cineasta também foi codiretor do indicado ao Oscar "Lixo Extraordinário", de "Janela da Alma" e, na ficção, de "Getúlio".
A equipe acompanhou por três meses estudantes do 3º ano do ensino médio durante a preparação para o Enem, principal porta de acesso à universidade.
Foram cerca de 60 horas de filmagens somente na escola estadual Milton Dortas, na cidade sergipana de Simão Dias (a 100 km da capital Aracaju).
Quase todo o filme se passa dentro da escola –uma unidade que, mesmo com mais mil alunos oriundos de famílias pobres, tem conseguido garantir acesso relevante ao sonhado ensino superior.
O diretor chegou à escola a partir de reportagem do jornal Folha de S.Paulo do fim de 2017, que mostrou o trabalho realizado por lá.
Assim como em "Pro Dia Nascer Feliz", a discussão é profunda, investigativa, e não está na boca de estudiosos. A condução vem da fala dos jovens, como no documentário anterior, mas em "Atravessa a Vida" a maioria das cenas e diálogos está na aulas, atividades no pátio, nas conversas ao vivo entre os alunos.
"Não é um filme jornalístico, mas afetivo", diz o diretor.
É praticamente um cinema direto. São apenas três depoimentos formais em que jovens contam mais detalhes sobre suas vidas –o primeiro aparece depois de 30 minutos de filme.
Nos depoimentos, surgem a pressão do vestibular, a escola como o caminho para uma vida melhor que a da família, a frequente ausência da figura do pai e o medo de não decepcionar.
"Meu objetivo de vida é fazer com que a vida da minha mãe tenha valido a pena por todo esse tempo de sofrimento", diz um dos alunos. "Eu tenho medo de, um dia, minha mãe chegar pra mim e dizer: 'Meu filho, não deu'."
A câmera fechada nos estudantes e educadores leva o espectador a se sentir na escola. Assim ocorre em discussões sobre as encruzilhadas da matemática, pena de morte, aborto, ditadura militar, ensinamentos da Bíblia ou mesmo sobre o suicídio entre jovens –cujo relato de uma aluna leva a professora às lágrimas.
Confira o trailer:
Também estão ali as dificuldades com a falta de professores, o desafio do ensino noturno, as aulas em meio ao barulho da obra pela qual a escola passava durante as filmagens. O filme ainda retrata os alunos votando nas eleições de 2018.
Trabalhos documentais em escolas buscam, em geral, registrar e explicar práticas, além de contar a história dos alunos. Mas o filme de Jardim consegue mostrar jovens refletindo, construindo suas opiniões, e também a festejar o aniversário da professora de matemática, jogando, envolvidos em atividades cívicas, divertindo-se, flertando e chorando.
Uma cena tocante mostra a diretora Daniela Silva (hoje na secretária de Educação do estado) a consolar, em seu ombro, uma aluna com problemas em casa.
Depois de chorar, a estudante agradece e, na sequência, passa a enxugar as lágrimas da educadora, também emocionada.
"Atravessa a Vida" apresenta uma escola desconhecida para a maioria das pessoas que não é estudante. Um espaço de resiliência, repleto de sonhos e desafios e, mais ainda, com uma juventude cheia de potência, como ressalta Jardim.
"O filme é muito sobre o jovem, sobre o adolescente, sobre esse movimento de 'atravessar a vida', e como a gente desperdiça toda aquela potência", diz o cineasta.
O lançamento era previsto para abril e foi adiado por causa da pandemia da Covid-19 e do fechamento de atividades como as salas de cinema. Estreia, agora, em meio às discussões da importância da escola provocadas pelo longo fechamento delas.
O filme foi feito para o cinema e deve chegar às salas até o início de 2021, quando ocorre a próxima edição do Enem.
Jardim diz que, apesar de a educação ser um ambiente fértil para a dramaturgia, pouco se aproveita dela. "Gosto de trabalhar com essa questão, é um momento importante e a gente entende muito pouco o que acontece dentro da escola", diz ele, que relaciona isso à visão sobre educação no país.
"O país não valoriza a educação porque não entende mesmo. Tenho vontade de mostrar para as pessoas a relevância do que está acontecendo."
Na aula em que os alunos olham para o espelho, o professor fala de Aristóteles, de futuro, pergunta a carreira dos sonhos dos alunos, e arremata: "Quando a gente olha para o espelho, o que a gente espera do espelho? Que não se quebre, né?".