Elis e os compositores: relembre nomes revelados pela cantora e o encontro com Tom Jobim
Artista deu exposição a nomes como Milton Nascimento, Gil, Ivan Lins e a dupla João Bosco e Aldir Blanc
Elis Regina, que faria 80 anos nesta segunda-feira (17), é da mesma geração de Nana Caymmi, Maria Bethânia e Gal Costa, mas nenhuma outra grande intérprete ficou tão associada ao lançamento de novos compositores. Essa busca traduz o quão inquieta era.
Após se livrar de um início comercialoide — em que tentaram usá-la para desbancar Celly Campello —, ela cresceu com as dicas de repertório do então namorado Edu Lobo, de quem gravou "Arrastão" (vencedora do Festival da Excelsior, em 1965), "Upa neguinho", "Pra dizer adeus" e outras.
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Foi Edu quem a apresentou a Gilberto Gil, que logo se tornou um de seus favoritos. "Amor até o fim", "Oriente", "Doente morena" e "Ladeira da preguiça" estão entre as várias que cantou, muito vezes lançando-as.
O mesmo aconteceu com Milton Nascimento, cuja timidez a desconcertava, pois dizia nunca saber se ele gostava de suas gravações.
Milton adorava e, até por isso, demorou a ficar à vontade. "Canção do sal", em 1966, foi a primeira de uma série que teve pontos altos como "Nada será como antes", "Caxangá" e "Maria, Maria".
Com Chico Buarque, a barreira da timidez não foi quebrada. Como Elis contou em entrevista a Fernando Faro em 1973, o ainda desconhecido compositor ficou tão inerte diante dela que não mostrou suas músicas.
Nara Leão acabou sendo a sua primeira intérprete de peso. Mas, com "Atrás da porta", em 1972, a cantora faria de uma letra de Chico propriedade particular.
"Ela tomava para si todas as canções que interpretava, tinha um compromisso com elas" recorda João Bosco, um dos autores cuja história teria sido outra sem Elis.
Em 1972, ele estava iniciando a parceria com Aldir Blanc, que no ano anterior vira "Ela" (feita com César Costa Filho) se tornar a faixa-título do disco da cantora.
João e o letrista foram a um ensaio no Teatro da Praia mostrar suas criações, saíram com a garantia de que "Bala com bala" seria gravada e, a partir daí, tiveram em Elis sua principal intérprete. "Cabaré", "Caça à raposa", "Transversal do tempo" e outras brilharam na sua voz, mas nenhuma como "O bêbado e a equilibrista", alçada a hino da campanha pela volta dos exilados políticos.
"Foi ela quem fez essa canção se transformar no que se transformou" diz João, para quem "a importância de Elis se percebe pela ausência de Elis".
Ivan Lins, autor de sucessos da cantora nos anos 1970, como "Madalena", "Me deixa em paz" e "Cartomante", e que se aliou ao letrista Vítor Martins por sugestão dela, ressalta a falta que faz sua agitação pública :
"Talvez, se ela estivesse viva, poderia nem estar cantando o que cantava, mas o repertório seria ainda irrepreensível e ela estaria, talvez, fazendo a cabeça dessas novas gerações com seu pensamento ativista e consequente"
Tal postura também significava um temperamento explosivo, motivo do apelido Pimentinha dado por Vinicius de Moraes.
João e Ivan presenciaram cenas de tensão da cantora, mas asseguram que não foram vítimas deles. Falar o que pensava podia ser cruel ou musicalmente estimulante.
"Ela parecia dizer sempre : "surpreenda-me"" conta Ivan.
Tim Maia ("These are the songs"), Belchior ("Como nossos pais"), Renato Teixeira ("Romaria"), Tunai ("As aparências enganam") e Guilherme Arantes ("Aprendendo a jogar") estão entre os que a surpreenderam e tiveram suas vidas mudadas por ela.
Elis e Tom
Antonio Carlos Jobim é o compositor mais gravado por Elis Regina. Segundo levantamento da pesquisadora Maria Luiza Kfouri, 24 músicas, cinco mais que João Bosco, seis mais que Edu Lobo.
Mas nem sempre foi assim. Nos primeiros dez anos de sua carreira em disco, a não ser por algumas inserções em pot-pourris do tipo "Dois na bossa" e "Tributo a Tom", Elis só gravou três canções de Jobim, as duas primeiras em LPs produzidos fora do Brasil, em 1969 :
"Wave" (duas vezes, uma em Estocolmo com Toots Thielemans e outra em Londres), "Insensatez" (também em Londres) e a menos conhecida "Frevo", da trilha de "Orfeu do carnaval" (1970).
A aproximação se faria exatamente a partir do 11º ano : "Estrada do sol" (1971) e "Águas de março" (1972). Já então, Elis sonhava com um projeto ao lado de Jobim.
Algo que fosse um momento histórico e o reconhecimento do maestro de que ela era, sem qualquer traço de dúvida, a maior cantora do Brasil.
Para tanto, nada mais representativo do que um disco nos Estados Unidos, o melhor dela interpretando o melhor dele, o próprio Jobim tocando, cantando e dividindo — não sem boa dose de resistência — os arranjos com César Camargo Mariano, então seu marido.
Aconteceu em 1974, com o disco "Elis & Tom", cujas gravações foram registradas em filme e inspiraram o documentário "Elis e Tom, s tinha de ser com você" (2023), de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay.
Não é impossível que a demora em interpretar Jobim e a necessidade de obter o seu aval tenham algo a ver com o começo de carreira de Elis na antiga Columbia. Quando Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e Jobim foram discutir com a gravadora a produção do disco "Pobre menina rica", musical dos dois primeiros, o nome de Elis foi sugerido para o papel principal.
Jobim, que deveria fazer os arranjos, não concordou. O papel exigia uma carioca sofisticada, como Dulce Nunes, e não uma "gauchinha ainda cheirando a churrasco".
O pior é que, no fim da história, não houve Elis nem Jobim, que desistiu do projeto preocupado com o tom das letras de Vinicius ("Pra pôr pra trabalhar gente que nunca trabalhou...") e foi substituído por Radamés Gnattali.
O texto acima une e atualiza duas matérias publicadas originalmente no Globo em 15 de janeiro de 2012