Elza Soares: plenitude para muitas primaveras
Prestes a completar 90 anos, cantora Elza Soares segue esbanjando vontades e compartilhando amor e protesto através da música
Elza Soares é hip hop, rap e rock in roll. É também personagem de quadrinhos, é samba, amor e protesto em lista de música de streaming. Aos 90 anos de vida, Elza é mais de 800 canções gravadas, é homenagem em Carnaval e biografia incontestável de mulher, negra e sobrevivente da fome, do ódio e da vida.
Mas em diálogo consigo mesma, de frente para o espelho, o que ela pede é “calma, fé, amor e paciência”, para, em seguida, completar com o imperativo de “cuidado com o que vem atrás e vamos embora”.
Embora afirme não pensar sobre o quanto é referência para muitos, a artista carioca de Padre Miguel, na plenitude de quase nove décadas – completadas no próximo dia 23, embora celebradas em 22 de junho, que na verdade é a data de um “registro de nascimento” que lhe deu emancipação quando casou, aos 12 anos - segue exalando força e compilando admirações, quando por exemplo, não se vale de passado e segue desejando futuros.
Parar? Quando mesmo? “Acho que não, não tem como”, retruca ela, em resposta à Folha de Pernambuco.
Em plena atividade, Elza segue movimentando o universo da música. O clipe de “Juízo Final” (Nelson do Cavaquinho/Élcio Soares), produzido como animação e tendo ela como a personagem "Onda Negra", orgulhosa de sua raça e ancestralidade e incansável contra o racismo, machismo, homofobia e fascismo, entre outras lutas, é uma prova atual disso.
Idealizado por Pedro Hansen, foi lançado há poucos dias pela Deck (gravadora), que este mês ainda traz a inédita “Negão Negra” (Flávio Renegado/Gabriel Moura) para os aplicativos.
“A música foi feita para isso, para acalmar, alertar, fazer paz. A música é sempre música”, justifica ela, sobre o poderio do seu cancioneiro diante de realidades nem sempre leves.
“Deve ser protesto, alívio, enfim... serve para tudo, embora a carne mais barata do mercado disseram que é a negra, eu não sei até quando nem até quanto”, complementa, fazendo menção à letra de Marcelo Yuca, Seu Jorge e Ulisses Cappelette, que ganhou força imensurável com sua interpretação.
CABELO E COR DE PELE
Sobre os dias em quarentena, Elza tem se dedicado a banho de sol e fisioterapia, e outro “monte de coisas” como ela própria afirmou. “O tempo vai passando e a gente vai passando... Tem muito o que fazer não, nem muito o que esperar”, ressaltou, complementando logo em seguida com um resoluto “Vamos em frente!”, típico de quem reconhece agruras mas não esmorece. Mas o que ainda pode lhe faltar?
“Me falta muita coisa...ver esse País melhor, ver as mulheres tomando os seus postos, sem que sejam violentadas. Isso me falta. O resto Deus dá, a gente busca e encontra, mas isso me falta”, responde em tom de lamento complementado por outro de seus clamores enquanto mulher e negra. “O racismo, a violência, isso me faz pensar muito alto minha gente”.
Ao mesmo tempo em que se mostra desobrigada de dar respostas longas, Elza consegue resolver diálogos com precisão esboçando sem titubear o que pensa sobre a vida e os dias atuais, e sobre o que lhe faz rir. “Sabe que também me pergunto? Por enquanto não tem motivos pra rir. Tem motivo para pensar e ficar triste, para rir ainda não”.
Mas é quando enxerga a si própria e sugere que a “vida seja vista com um olhar mais atento para o outro”, assegurando que assim “é bem melhor”, que Elza se mostra como de fato ela é: vencedora, dona de si, apoteótica. Livre e confessionária, novamente, do próprio reflexo.
“Todos os dias me levanto, olho no espelho, sempre me encanto com o meu cabelo e a cor da pele dos meus ancestrais. (...) Para quem passou pelo que eu passei, celebrar durante um mês inteiro é pouco”, relata em postagem na rede social no dia de um de seus aniversários, o de emancipação.