Em 'Aeroporto Central', Karim Aïnouz registra histórias de refugiados
Lançado diretamente em plataformas online, documentário do cineasta cearense mostra o cotidiano de um aeroporto transformado em abrigo para imigrantes em busca de asilo na Alemanha
O Aeroporto de Tempelhof, em Berlim, foi sendo ressignificado ao longo das décadas. Construído durante o regime nazista, serviu de prisão na Segunda Guerra Mundial e de base militar para os americanos, até ser desativado em 2008. Entre 2015 e 2019, foi transformado em abrigo para refugiados de diversas partes do mundo. O cineasta cearense Karim Aïnouz conheceu o local nesse contexto, que o motivou a realizar o documentário “Aeroporto Central”, já disponível nas plataformas de vídeo sob demanda, como Now, Vivo Play, Oi Play, Itunes, Google+, Filme Filme e Looke.
Karim mora na Alemanha há 11 anos e já costumava frequentar a parte externa do aeroporto, transformada em parque em 2010. Quando a construção passou a receber os imigrantes, um sentimento de perplexidade passou a tomar conta do diretor. “Fiquei indignado com a forma como aquele assunto era tratado pela mídia alemã, que falava daquelas pessoas como multidões sem rostos”, relembra o diretor, que conversou com a Folha de Pernambuco.
Os antigos hangares passaram a acolher milhares de pessoas em busca de asilo, vivendo temporariamente em cômodos improvisados, sem portas e dividindo espaço com até 11 pessoas. Um dia, quando filmava para outro projeto no parque, Karim decidiu entrar no aeroporto e conhecer de perto essa realidade. “Na época, a estrutura ainda era muito precária, diferente do que o documentário mostra. Vi que aquilo precisava ser documentado. Pensei que seria importante ter isso registrado no futuro”, conta.
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O cineasta não obteve autorização imediata para realizar o filme. Só após muitas negociações é que conseguiu começar a registrar tudo. “Fiquei seis meses visitando o lugar, mas sem filmar nada, já que ninguém queria ser filmado. Em algum momento achei que não conseguiria fazer um documentário e até cogitei, pela primeira vez, escrever um livro”, revela. Vencendo a resistência inicial, ele conseguiu acompanhar de perto o dia a dia de abrigados e funcionários do centro de acolhimento ao longo de um ano, entre 2015 e 2016.
Embora diferentes personagens apareçam na tela, o filme tem dois protagonistas. Eles são o estudante sírio de 18 anos Ibrahim Al-Hussein e o fisioterapeuta iraquiano Qutaiba Al-Hussein. “Senti que, de todos, eles foram os que mais queriam contar suas histórias. A produção deu um caderno a cada um, para que eles fizessem uma espécie de diário, contando suas trajetórias. Fiquei muito tocado com o que o Ibrahim escreveu. Tanto que, na edição, resolvi incluir o texto e ele acabou virando um narrador do filme”, explica.
Em meio a aulas de alemão, exames médicos, momentos de lazer e conversas com funcionários do serviço social, os refugiados falam da saudade que sentem do que deixaram para trás e da vontade de construir um futuro no novo país. Filho de um argelino, Karim se reconhece um pouco nessas histórias. “Aos 18 anos, fui morar com meu pai na França. Por causa do meu nome, lá eu virei árabe para as pessoas. Não foi uma experiência muito prazerosa. Tenho consciência dos meus privilégios. Claro que não fugi de uma guerra e sempre tive uma país para onde voltar, mas saí da França com muita raiva. Então, esse filme acaba sendo uma acerto de contas para mim”, compartilha.
Após conquistar o prêmio da Anistia Internacional do Festival de Berlim e outros reconhecimentos, “Aeroporto Central” chegarias às salas de cinema brasileiras no dia 26 de março. Como ocorreu com outras produções, os planos foram alterados em função da pandemia do novo coronavírus. “Cheguei a pensar em não lançar. Mas depois de rever o documentário e conversar com as co-produtoras, percebi que fazia sentido a estreia. Afinal, o filme fala de pessoas confinadas e que não tinham domínio nenhum sobre o amanhã. Há um diálogo interessante com o momento”, diz.
Mesmo vivendo em outro continente, Karim não deixa de se preocupar com a atual situação do Brasil. “Me pergunto que país é esse, que tem flertado cada vez mais com o fascismo. É desesperador ver pessoas contra o isolamento social, abraçando discurso de ódio e insanidade”, lamenta. Sobre o futuro do audiovisual nacional, que vive dias de crise, ele é otimista. “Acho que o cinema nunca foi tão importante. O que seria da gente se não tivéssemos filmes para poder escolher assistir? Com certeza, seria mais difícil enfrentar essa quarentena. Quando tudo isso passar, creio que o cinema brasileiro vai voltar com ainda mais força, com ou sem apoio federal. Não podemos nos deixar intimidar”, defende.