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Análise

Em 'Black Is King', Beyoncé exalta a ancestralidade e riqueza em ser negro

Novo álbum da cantora norte-americana para a Disney+ conta a história de Rei Leão em uma narrativa contemporânea

Beyoncé lança o 'Black Is King', no Disney+Beyoncé lança o 'Black Is King', no Disney+ - Foto: Divulgação

Na estreia do documentário “Homecoming”, um registro audiovisual do show épico de Beyoncé no Festival Coachella, na Netflix, em abril de 2019, o mundo foi surpreendido com a suntuosidade artística, poética e ativista no trabalho - presente dos ensaios à apresentação. Era a primeira mulher negra como estrela do palco do festival, considerado o maior dos Estados Unidos, e a artista preparou uma narrativa que demonstrava o quão gigante é a celebração cultural dos afro-americanos.  O filme já sintetizava, ali, uma década de evolução estética, política e discursiva da cantora texana. Prestes a completar 39 anos, a “Queen B” passou a compreender seu papel na cultura pop em trabalhos e mobilizações na última década: ocupando e distribuindo espaços aos seus (afrodescentes) em um país marcado pelo racismo. 

Em “Homecoming”, Beyoncé teve o desafio de representar sua própria carreira de 22 anos, reverenciando seus antepassados que pavimentaram o caminho para ela se tornar a maior estrela pop da atualidade. Em “Black Is King”, novo álbum visual da cantora para a plataforma Disney+, ela tem uma proposta ainda maior: mostrar que a história de negros e negras da diáspora africana (negros forçados a sair do continente nos processos de colonização) descende de reis e rainhas. Ele estreou na sexta-feira passada (31), com o propósito de reencenar a narrativa de Simba, protagonista de Rei Leão, clássico da Disney que teve remake lançado no ano passado, em formato de Live Action. Na produção, ela interpretou Nala, leoa que é uma das figuras centrais da história.

Contudo, dublar uma personagem parecia pouco perto do que Beyoncé tinha a oferecer àquele novo filme, que foi criticado por não apresentar arcos narrativos novos, tampouco se reinventou além das estruturas imagéticas. Em paralelo ao longa-metragem, a cantora e compositora apresentou o álbum “The Lion king: The Gift”, em julho de 2019, em uma espécie de “carta de amor à África”, como a própria o definiu. O disco já contava a história da jornada de Simba, com 27 faixas, mescladas entre canções originais e interludes retiradas da refilmagem do filme. Assumindo o posto de produtora executiva, Beyoncé convidou artistas, produtores e compositores afro-americanos e nomes do pop africano para construir um álbum repleto de tessituras de enaltecimento à cultura e ancestralidade africana.

Um ano depois, a cantora apresenta o disco de uma forma diferente: mostrando a jornada de reis e rainhas com visuais em “Black Is King” - como havia feito em 2013, com o “Beyoncé”, e em 2016, com o “Lemonade”. O novo longa musical, que possui uma duração de 1 hora e 25 minutos, conta a história de Simba através de um menino negro que é levado a conhecer suas raízes, seus povos e suas belezas para ser levado de volta ao seu reinado. Aqui, Beyoncé pode ser interpretada como o próprio continente africano, funcionando como um guia espiritual que acompanha o protagonista de volta à sua história - passeando por universos que são pincelados por musicalidade, dança, beleza, religiosidade e força dos povos africanos.

Força narrativa

Toda a jornada se inicia da água. Segundo alguns povos nativos do continente, o elemento significada vida e morte, simbolizando também o renascimento dos seus. Dela, Beyoncé dá início à trajetória de Simba através de “Bigger”, uma canção poderosa de exaltação à negritude. “Ah, você é parte de algo muito maior/ Maior do que você, maior do que nós/ Maior do que a imagem que eles pintaram para vermos”, diz um dos trechos da música. E a água, que ao mesmo tempo separa os negros em diáspora pode ser encarado como um ponto de encontro no “Atlântico Negro” - oceano que banha os continentes africano, americano e europeu - na canção “Water”, parceria de Beyoncé com Pharrell Williams e o nigeriano Salatiel.

Porém, ao longo do filme podemos compreender que Simba somos nós, povos negros, afastados do continente pela dor e luta dos nossos antepassados. A partir dessa contextualização, somos levados a compreender como a nossa jornada é bela, única e repleta de riqueza em sua história e, que podemos resgatar nossas realezas através da conexão com a nossa ancestralidade e conhecimento de onde viemos. “Nós éramos lindos, antes mesmo deles saberem o significado da beleza!”, diz Beyoncé. Entretanto, antes de sermos levados a essa jornada, Simba encara o mundo obscuro - aos cair nas mãos de Scar -, entre os musicais de “Don’t Jealous Me”, dos nigerianos Yemi Alade, Mr. Eazy e Tekno, “Scar”, interpretada por Jessie Reyez, e “Ja ara e”, do astro nigeriano Burna Boy.

Profundidade da obra

Para a composição da obra, Beyoncé não poupa referências políticas, teóricas, musicais e estéticas africanas e afrodiaspóricas. Ela vai do nigeriano Fela Kuti, considerado o inventor do afrobeat, a Michael Jackson, em referência ao filme musical “Moonwalker” (1988). Também está presente o afrofuturismo, um movimento social, cultural e estético que mistura afrocentrismo e ficção científica. Além disso, pode-se notar como o filme é matriarcal - presente nas culturas africanas -, e também defendido na teoria do “mulherismo africana”, termo cunhado pela autora Clenora Hudson-Weems na década de 1980. Em “Black Is King”, as mulheres vão à guerra, como a referência às ganenses em “My Power”, ou quando a cantora interpreta Iansã, orixá que é rainha dos trovões. Tudo é pincelado com uma narrativa decolonial, que ganhou forças nos últimos meses nos protestos antirracistas - negros não querem ser representados por figuras brancas colonizadoras.

Todo o filme é trilhado por uma fotografia vibrante, figurinos ricos e caros, além de paisagens avassaladoras. Há uma África múltipla, mas principalmente representada por elementos culturais da parte ocidental, os quais somos imersos a conhecer. É um continente diferente das manchetes e produções que mostram a face da pobreza, miséria e que só ganha destaque com guerras e epidemias que atacam suas nações. E isso só foi possível com a colaboração de grandes nomes africanos, que vão da música à direção criativa.  Os maiores astros do afropop estão ali: Burna Boy, Yemi Alade, Salatiel, Mr. Eazy, Tiwa Savage e WizKid. Mas também há nomes preciosos, entre veteranos e iniciantes, como a sul-africana Moonchild Sanelly e Shatta Wale. 

Os talentos africanos também assinam a moda, a coreografia, direção e atuação no filme. O grande significado da produção também está neles. Beyoncé compreendeu seu papel e como a artista mais poderosa do mainstream quer elevar os seus a outro patamar. Há comparações midiáticas com o considerado trabalho antecessor, “Lemonade” (2016), e os que detém o poder da informação ainda não compreenderam a mensagem que a cantora traz desde o seu poderoso álbum contra o racismo nos Estados Unidos. Em “Black Is King”, a “Queen B” parece estar em uma jornada que ainda não acabou, em compreensão ao autoconhecimento, valores e história que a ela foi negada no passado. Se ela considera o filme como uma “carta de amor à África”, nós podemos interpretar como uma “celebração ao amor à negritude e uma projeção de um futuro de igualdade e fraternidade para os negros em diáspora”. 

Há uma projeção de chegada ao filme no Brasil em novembro deste ano, mas, por enquanto, os fãs brasileiros podem ouvir o disco de inspiração nas plataformas digitais - o qual ganhou versão deluxe com a inclusão do hino ao orgulho negro "Black Parade".

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