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LITERATURA

Em novo livro, Michel Laub reflete sobre cicatrizes da pandemia: "Não é o caso de perdoar ninguém"

Lançando "Passeio com o gigante", sobre advogado sionista arrependido de ações na eleição de 2018, autor fala de divisões da comunidade judaica e do atual conclito no Oriente Médio

Michel Laub Michel Laub  - Foto: Divulgação/ Renato Parada

Em meio aos traumas do passado e à indefinição do futuro, Michel Laub encontrou algum motivo de esperança — ainda que esse otimismo tenha um fundo doloroso. Seu novo romance "Passeio com o gigante" (Companhia das Letras), é uma das primeiras ficções brasileiras a se voltar para o clima político no auge da pandemia de Covid-19, agora com alguma distância histórica.

Como é de praxe nos últimos livros do autor, trajetórias íntimas e coletivas se mesclam. A narração onisciente se confunde com a voz do protagonista, Davi Rieseman, um advogado ligado à causa sionista que, doente e a caminho do hospital, revê suas convicções políticas e religiosas. O protagonista regressa de forma recorrente a um mesmo discurso, próximo da eleição de 2018, em que justifica o apoio a um “líder” não nomeado. Entre o delírio e o despertar da culpa, um coro misterioso o lembra dos estragos que suas escolhas causaram para o país, mas também à sua família.

“Passeio com o gigante” aborda temas ainda quentes no noticiário (e na literatura de não ficção): as consequências da eleição de Jair Bolsonaro, a violência política, a radicalização das religiões e a sua influência cada vez maior no Estado.

Escrito antes dos atentados do 7 de outubro de 2023 contra Israel, o livro ecoa o atual conflito no Oriente Médio ao narrar a formação de Davi no ativismo político e religioso. Laub, 51 anos, que é judeu e abordou assuntos como a memória do Holocausto em livros como “O diário da queda”, conversou com O Globo sobre os principais pontos de seu novo romance, que tem lançamento no Rio de Janeiro nesta terça (14), às 19h, na Livraria da Travessa (R. Maria Angélica, 171 - loja B - Jardim Botânico), com sessão de autógrafos e bate-papo com Karla Monteiro.

 

Seu título anterior, "Solução de dois estados" era uma espécie de estudo sobre um Brasil dividido, com discursos irreconciliáveis. Como esse assunto evoluiu em “Passeio com o gigante”?
A diferença entre os dois está no momento em que os escrevi. Terminei "Solução de dois estados" no primeiro ano da pandemia, durante o governo Bolsonaro. Ali era pura treva, não tinha como ser otimista. O livro saiu quase como um documento do fim de qualquer perspectiva. Agora, com “Passeio com o gigante”, é diferente. A ameaça extremista segue aí, mas apesar de tudo acho que é um tempo melhor que 2020. Dá para pensar um pouco para frente, dentro do possível. A própria ideia de ter um personagem que muda de opinião, no contexto que a gente tem hoje, já mostra isso.

Em que medida a pandemia foi responsável em abrir esses pontos de diálogos que haviam se fechado?
Agora a pandemia já é memória histórica, mesmo que recente, e é possível aos poucos começar a elaborá-la como se faz com eventos traumáticos. Há um trecho no livro que menciona a tendência de esquecer o que realmente foi aquilo tudo, e aí pode haver paralelo com qualquer grande tragédia histórica que acaba atenuada ou esquecida. Do ponto de vista pessoal, talvez o fato de que esse livro trate de um personagem judeu, o que é obviamente mais sensível para mim, abriu mais portas para uma tentativa maior de compreensão, de tirar o pé do acelerador apocalíptico. Não é o caso de perdoar ninguém, até porque o livro rejeita a ideia do perdão simples, e por isso a doutrina judaica a respeito está lá. É mais a ideia de partir da culpa para uma ação reparadora. Isso também é um tipo de otimismo.

A pandemia despertou a consciência dos brasileiros?
Não. Quando comecei a escrever o livro, achei que esse tema ia estar dado, que o personagem ia de algum modo representar algo mais comum ao nosso redor. Hoje vejo que ele é quase um caso único. Até porque segue havendo guerra de narrativas sobre o que de fato aconteceu em 2020 e 2021.

Nesse sentido, acabou sendo mais um desejo de escritor do que uma realidade?
É. Eu vejo o livro como otimista até nisso. Dá para pensar que tudo é muito recente ainda, e que no futuro se fará esse exame da História. Só que as pessoas não gostam de lembrar de doenças. Durante uns 20 anos, foi relativamente incomum haver obras de ficção sobre Aids, por exemplo.

O protagonista do romance, Davi, volta de forma recorrente a um discurso de apoio ao “líder” perto da eleição. É uma referência à palestra de Bolsonaro na Hebraica do Rio, em 2017, quando o então candidato à presidente proferiu comentários tidos como racistas contra quilombolas?
Lamentei muito aquele discurso. Mas não. Ainda que “Passeio” também seja sobre um discurso, a escolha foi motivada por uma questão de formato narrativo mesmo, que é a respeito da multiplicidade do pensamento dos judeus hoje. O livro é um pouco uma homenagem a essa multiplicidade, que para mim está muito vinculada à cultura diaspórica da dúvida. Em Israel também há muita divergência, os caras vivem brigando entre si. Acho que seria legal os judeus progressistas se pronunciarem, muitos já fazem isso. Eu estou fazendo, dentro do que me cabe. Tenho orgulho de fazer parte de uma corrente que pensa a condição judaica de outro modo, acho que mais rico, complexo.

Davi se aproxima de pastores evangélicos. Em comum, eles buscam uma maior participação de suas religiões no Estado. Como vê essa aliança entre um certo judaísmo e um certo cristianismo por mais poder político?
Aí tem uma ideia que o livro do filósofo Rodrigo Nunes, “Do transe à vertigem” sintetizou bem: a de que o bolsonarismo é mais racional do que se pensa. Ele é uma resposta lógica a um clima de medo e desamparo surgido de crises sistêmicas: a do clima e a da mudança no mercado de trabalho. Na prática, isso é o apocalipse chegando de vários lados, e as certezas do mundo anterior não existem mais. O Estado há muito tempo não consegue oferecer um anteparo a esse desespero, e aí entra a religião pragmática com alguma oferta de ajuda material, de senso comunitário. Do outro, entra o bolsonarismo com uma ideia de salve-se quem puder. Diante do caos, cada um que cuide de si, da sua família, de seus iguais. As duas forças se complementam. Essa gradual saída de cena do Estado, que seria classicamente o detentor do monopólio legítimo da violência, tende a gerar o caos.

O livro foi escrito antes da guerra, mas de alguma forma ele dialoga com o que acontece hoje em Gaza e com as políticas de Israel?
Sim, não tem como não dialogar. Mas acho que é um livro mais vinculado à questão brasileira mesmo. Israel é importante na história, mas mais importante é como o personagem manipula os fatos referentes a Israel para fazer sua pregação por aqui. A História está nos meus livros, mas não está sozinha. Sempre depende do que as vozes do livro fazem da História.

Como tem acompanhado o conflito?
Com preocupação e indignação. Minha opinião a respeito não é diferente da média do pensamento progressista a respeito. Não é preciso ser judeu, nesse caso, para opinar. Tem coisas que são objetivas, como o ataque a civis. Nenhuma adversativa vai justificar os bombardeios a Gaza.

O presidente Lula foi muito criticado por sua comparação da ação israelense em Gaza e o Holocausto. Qual é a sua opinião sobre essa fala?
Digo sem adversativas, porque são eventos que falam por si. Os bombardeios e mortes de civis em Gaza são deploráveis, ponto. Os assassinatos do Hamas são deploráveis, ponto. Em meio a isso, a causa palestina é justa e Israel está errado em suas políticas a respeito. Foi um erro político, antes de mais nada, porque isso em nada colabora para uma solução, mesmo que temporária, para a guerra. Evocar essa memória é algo doloroso para os judeus. Isso não significa que o Lula esteja errado em condenar a ação de Israel. Se tivesse chamado de massacre o que ocorre em Gaza, de crime de guerra, não levantaria essa poeira inútil que, como sempre nesse tipo de debate, favorece a extrema direita.

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