'Emilia Pérez': como o musical sobre um traficante transexual driblou polêmicas e bateu recorde
'Quem não gostou que faça seu próprio filme', diz a protagonista Karla Sofía Gascón, que reclamou de comparações com Fernanda Torres
Como um musical sobre um chefão do tráfico mexicano que se submete a uma cirurgia de redesignação sexual se tornou o filme não falado em inglês com mais indicações ao Oscar na história apesar de ter causado tantas polêmicas? “Emilia Pérez”, do cineasta francês Jacques Audiard, concorre a 13 estatuetas, incluindo melhor filme, melhor filme internacional e melhor direção.
A espanhola Karla Sofía Gascón, que vive a personagem-título, também fez história: é a primeira pessoa transexual indicada a um Oscar por atuação. A consagração de “Emilia Pérez”, que estreia no Brasil em 6 de fevereiro, é quase tão surpreendente como o enredo do filme.
Manitas Del Monte (também interpretado por Gascón) é um traficante graúdo que contrata a advogada Rita Moro Castro ( Zoe Saldaña) para lhe arranjar um cirurgião discreto. Sem contar nada para a mulher, Jessi ( Selena Gomez), ele forja sua própria morte, retorna como Emilia Pérez e finge ser uma parente distante para continuar perto dos filhos.
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E não para por aí. Emilia cria uma ONG para apoiar famílias de pessoas desaparecidas em meio à guerra às drogas no México (mais de cem mil desde a década de 1960). Essa trama insólita é contada por meio de canções e coreografias — a inteligência artificial ajudou a afinar a voz da protagonista nos números musicais.
Temas do cineasta
Não é de hoje que o cineasta francês Jacques Audiard se interessa pelo mundo do crime e pela possibilidade de mudar de vida (e até de identidade), temas abordados em filmes como “Um herói muito discreto”, de 1996, e “O profeta” (que concorreu ao Oscar em 2010).
É por isso que um personagem secundário do romance “Écoute” (Escute), de Boris Razon, lhe chamou tanta atenção: um traficante mexicano decidido a se assumir como mulher. O diretor resolveu desenvolver mais essa figura num filme que parecesse uma ópera (gênero que ele adora), discutisse a violência e tivesse um elenco feminino forte.
“Emilia Pérez” levou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, no ano passado, e o troféu de melhor atriz foi dividido entre Sofía Karla Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz (mexicana que interpreta Epifanía, viúva de um desaparecido que se envolve com a protagonista).
O filme também arrebatou quatro Globos de Ouro: melhor comédia ou musical, melhor filme de língua não inglesa, melhor atriz coadjuvante (Saldaña) e melhor canção original. Zoe Saldaña, que brilha cantando, dançando e atuando em espanhol, é favorita ao Oscar.
Apesar da boa acolhida em premiações americanas e europeias, o filme vem sendo criticado no México. Além de não ter atrizes mexicanas nos papéis mais destacados, “Emilia Pérez” foi filmado nos arredores de Paris. E Audiard, que não fala espanhol, disse não ter pesquisado “tanto” a realidade mexicana. Depois, numa entrevista à CNN, ele se desculpou.
O tratamento dado ao drama dos desaparecidos também incomodou. No britânico The Guardian, a crítica Wendy Ide questionou se a maneira “sincera”, mas “um tanto popularesca”, como o filme aborda a violência dos cartéis não “banaliza o assunto”.
Audiard defende o filme, que, afinal, é dele, e por isso não precisa atender à visão de outros:
— Em certas ocasiões, em vez de escrever artigos, fazer documentários e apelar para o racional, temos que mudar o meio de transmitir a informação para falar ao coração das pessoas. Por isso eu quis fazer uma ópera. A música tem um poder de convencimento mais eficaz do que um documentário. Porque é da música que as pessoas se lembram — afirma o cineasta, que veio a São Paulo para divulgar o filme e falou com o GLOBO antes do anúncio dos indicados ao Oscar.
“Emilia Pérez” também foi acusado de transfobia pela Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação (Glaad, na sigla em inglês). O filósofo espanhol Paul B. Preciado, que é transexual, disse que o filme é “carregado de racismo e transfobia, exotismo antilatino e binarismo melodramático” e que reforça a “narrativa colonial e patologizante” da transexualidade. Preciado reclamou ainda porque, em seu ponto de vista, o musical usa a transição de gênero como estratégia de redenção de um criminoso: “o assassino do filme de Audiard se converterá em mulher para tentar deixar de matar”.
Também em São Paulo para divulgar o filme, Karla Sofía Gascón rebate à altura: pergunta se Preciado é “um jornalista LGBT que fez uma crítica no El País” e diz que ele representa tanto a comunidade trans quanto ela:
— Ou seja, zero. Ninguém nos elegeu democraticamente para representar as pessoas LGBT — afirma. — “Emilia Pérez” mostra que pessoas com identidades sexuais diferentes estão em todos os âmbitos da sociedade e como é difícil sair da obscuridade para a luz, que é onde todos deveríamos viver. Quem não gostou que faça seu próprio filme para expressar o que quiser. Vai ter tanto valor quanto o nosso.
Mesmo com tanta polêmica, “Emilia Pérez” é favorito ao Oscar de melhor filme internacional, concorrendo com “ Ainda estou aqui”. A revista americana Variety especulou que o filme sobreviveu às pedradas graças ao investimento pesado da Netflix (distribuidora do longa nos EUA) na campanha do Oscar e ao carisma das atrizes.
— O melhor que um ator pode fazer é trabalhar para que seu colega faça a melhor atuação da vida dele. Foi isso que todas nós fizemos em “Emilia Pérez”, trabalhamos umas para as outras — reforça Gascón. — E no elenco tínhamos atrizes de Hollywood que podiam ter chegado e me dito: “Nem ouse falar comigo!”
O jogo das redes sociais
Gascón reclama que as redes sociais estão transformando a corrida pelo Oscar de melhor atriz numa competição pessoal entre mulheres, comparando sua atuação com a de Fernanda Torres para diminuí-la e exaltar a brasileira.
— Não gosto disso, acho feio. Para ressaltar o trabalho de uma atriz, não é necessário desmerecer o trabalho de outra. Espero que Fernanda ganhe todos os prêmios do mundo. Não acho que eu seja mais merecedora do que ela. Mas acho ridículo esse jogo montado nas redes sociais para destroçar minha atuação e meu filme — protestou a espanhola.
Nesta sexta-feira (24), Fernanda compartilhou um vídeo nas redes sociais contando do carinho com o qual Gascón a recebeu em Hollywood e pediu para sua torcida “não tratar ninguém mal” nem “alimentar ódio”.