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Escolinha de Arte do Recife resiste ao tempo e à crise
Com quase 70 anos, instituição vem formando arte educadores, artistas e não-artistas, e guarda um acervo com verdadeiros tesouros
Rua do Cupim, 124, Graças. Quem passa pela calçada nem sempre presta atenção nas duas casinhas modestas e interligadas, que destoam completamente do entorno que foi sendo gradativamente construído. Outros não tiram os olhos do espaço: as construtoras que querem levantar mais prédios, a empresa vizinha que sonha em ampliar sua área, gente que sem sucesso tenta tirar as casinhas dali. Mas, imutáveis, elas seguem de pé. E a permanência delas, às vezes, parece se dar por conta de uma magia que não se explica. Ou de uma teimosia que vem de muito longe.
Era uma vez, em 1953, um grupo que valorizava a arte como forma de expressão e que fundou a Escolinha de Arte do Recife (EAR), que, ao longo destes quase 70 anos, acumulou muita história. Entre as centenas de alunos que por lá passaram, há artistas consagrados, como José Patrício e Gil Vicente, e gente de renome, como o ex-governador Eduardo Campos (bem como seus tios, seus primos e seus filhos).
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A maioria, porém, não teve tanto destaque e compõe uma multidão de anônimos que ali exerceram o prazer de ter contato com a arte - entre estes, a jornalista que escreve esta matéria e que, em diversos momentos da infância e da adolescência, sentiu a necessidade de voltar à Escolinha por reconhecer nela um colo seguro.
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Em vez de slime, havia o barro, plasma primordial de formas múltiplas. No lugar da tela do celular, as brincadeiras com os pés no chão, até hoje um atrativo para os pequenos que por ali passam. Teatro, pintura, música, todas as linguagens abertas à experimentação lúdica. E, na hora do recreio, o pastel de carne com cobertura de açúcar feito por Tia Maria, hoje falecida: cheiro e sabor que tornavam todos os sentidos plenamente exercidos, delícia que se tornou saudade unânime para todos os que frequentaram a Escolinha entre as décadas de 1970 e 1990, quando o espaço viveu seu auge em termos de frequência.
Hoje, com as matrículas em declínio, surge o temor: será que a sina da Escolinha é virar saudade? À frente do espaço há dez anos, o professor Everson Melquíades acredita que não, mas enfrenta uma crise séria, que vem se agravando pouco a pouco. Melquíades é tão apaixonado pelo que faz que, por muito tempo, dividiu os custos de manutenção da EAR com Cleonice Régis, uma professora antiga, verdadeiro símbolo do espaço. Cleo deixou de ser diretora e faleceu com mais de 90 anos, deixando sua utopia de herança para Melquíades e para outros funcionários.
Sem dinheiro para honrar os custos de R$ 13 mil mensais, bancados em parte pela mensalidade de alunos e em parte retirados do seu salário como professor da UFPE, Melquíades entrou em acordo com os funcionários e, desde o começo do ano passado, a EAR vem sendo mantida por meio do trabalho voluntário dele mesmo, de duas ex-professoras, Zenaide Ramos e Auvaneide Carvalho, e de ex-alunos que se dispõem a ajudar. Uma delas, a cantora Mirinha Costa Carvalho, estava silenciosamente varrendo as folhas do jardim no dia em que fomos realizar esta matéria. "Estar aqui me faz bem", resume ela.
"A Escolinha perdeu o sentido dentro do contexto atual", lamenta o professor Fernando Azevedo, também da UFPE e autor de várias pesquisas sobre Arte Educação. "A tendência, infelizmente, é que ela siga o caminho das outras escolinhas", concorda Sebastião Pedrosa, professor aposentado da UFPE e artista plástico de renome, além de ex-aluno, professor e diretor da EAR.
Para Ana Mae Barbosa, ex-estagiária e professora da EAR, professora aposentada da USP e uma das mais destacadas especialistas em ensino de Arte no Brasil, a Escolinha de Arte do Recife perdeu, sim, um pouco de visibilidade e o reconhecimento de pessoas não-especialistas no tema, mas seu sentido jamais se perdeu. "Hoje, mais que nunca, ela é importante para continuar a defesa do ensino da arte, num momento em que existe uma verdadeira guerra pública coordenada pelo Ministério da Educação para excluir a arte do currículo escolar", denuncia.
A Escolinha de Arte do Recife (EAR) foi a segunda dentre as dezenas de espaços dedicados à Arte Educação que se espalharam pelo Brasil, Argentina, Portugal e Paraguai a partir dos anos 1940. "As escolinhas foram um nascedouro para a Arte Educação moderna no Brasil", pontua o professor Sebastião Pedrosa. Segundo a pesquisadora Ana Mae Barbosa, "houve um movimento extraordinário que resultou em mais de 140 escolinhas" - das quais poucas permanecem em atividade. No Recife, o movimento foi liderado pela educadora Noêmia Varela, ligada ao também educador Paulo Freire, e teve o apoio do artista plástico Augusto Rodrigues (criador da primeira Escolinha de Arte do Brasil, fundada no Rio de Janeiro em 1948 e, atualmente, desativada).
Em seu grupo inicial, a EAR contava com nomes célebres como Lula Cardoso Ayres, Reynaldo Fonseca e Abelardo da Hora, entre outros. Além de contribuir com a formação de gerações de arte educadores de Pernambuco e de fora do Estado, desde o princípio, a Escolinha local foi revolucionária e inclusiva, recebendo crianças sem distinção de suas características individuais. Sem se prender a regras ou cópias, os alunos tinham a liberdade de se expressar e compuseram aquele que é um dos acervos mais preciosos e menos estudados da instituição: um montante de aproximadamente 20 mil trabalhos, entre esculturas, pinturas, desenhos e outras formas de arte.
Num mundo em que a tecnologia se torna a chave para o sucesso, muitos pais têm um certo preconceito com a ideia de colocar os filhos para estudar naquela casa antiga, que mais parece um museu. E, de fato, a EAR guarda muitos tesouros: uma biblioteca com dezenas de livros raros; um acervo de obras de arte popular doado pelo artista Abelardo Rodrigues, no qual se destacam 20 peças do Mestre Vitalino; parte do acervo da Oficina de gravuras Guayanases, grupo ao qual a professora Teresa Carmen Diniz estava ligada; a primeira prensa de litografia do Norte-Nordeste; e esculturas, pinturas e gravuras de artistas variados, entre eles, o acervo de educadoras que já se foram, como Noêmia Varela, Cleonice Régis, Teresa Carmen, Solange Costa Lima e Ana Maria Lucena. "Há peças incríveis, inclusive uma roupa de Noêmia que foi pintada por Portinari", revela Melquíades. O contato com esse passado se dá de forma orgânica, ao circular pelas salas da instituição. Mas nem por isso a experiência é algo ultrapassado, fora da realidade das crianças que estudam robótica e têm canais no YouTube.
"A arte é uma experiência interdisciplinar, que precisa de tempo, espaço e professores especializados para ajudar a desenvolver integralmente os seres humanos, e essa é uma necessidade perene, sempre atual", explica Ana Mae Barbosa, citando "casos de sucesso" como a Finlândia e outros países nórdicos, onde o tema é um viés que permeia toda a vivência escolar.
Melquíades admite que sente um certo descaso em relação à Escolinha: quase nenhum aluno vem dos arredores, de bairros 'nobres' como Graças e Aflitos. "Vem gente até de Boa Viagem e Casa Forte, mas de perto, não", confessa. Para os que apontam um perfil 'elitista' da instituição, a resposta silenciosa vem através dos vários alunos oriundos de escolas públicas que frequentam o espaço pagando menos do que a mensalidade normal, ou até sem pagar nada, num momento em que cada real é crucial para a sobrevivência da EAR.
Melquíades admite que sente um certo descaso em relação à Escolinha: quase nenhum aluno vem dos arredores, de bairros 'nobres' como Graças e Aflitos. "Vem gente até de Boa Viagem e Casa Forte, mas de perto, não", confessa. Para os que apontam um perfil 'elitista' da instituição, a resposta silenciosa vem através dos vários alunos oriundos de escolas públicas que frequentam o espaço pagando menos do que a mensalidade normal, ou até sem pagar nada, num momento em que cada real é crucial para a sobrevivência da EAR.
Everson Melquíades está à frente da Escolinha de Arte do Recife há dez anos - Crédito: Ed Machado/Folha de Pernambuco
José Patrício parou de frequentar o espaço com regularidade após entrar na universidade, mas continuou comparecendo para utilizar a prensa de gravura em metal. "A Escolinha é uma instituição muito importante, muita gente passou por ela, artistas e não artistas, e é uma pena que ela esteja nessa situação de crise, de forma recorrente. Não é de hoje, e não dá pra entender isso, porque ela é um patrimônio de Pernambuco. Falta apoio mais perene do poder público e da própria sociedade", critica.
Curso de Férias "Olinda em Toda Parte"
Para quem quer conhecer a Escolinha, a oportunidade pode ser o curso de férias que começa segunda (6) e segue até o dia 30 de janeiro. Voltado para crianças a partir dos dois anos e dividido em quatro módulos independentes, ele trabalha de forma lúdica a produção dos artistas olindenses Guita Charifker (aquarela), Tiago Amorim (cerâmica), Iza do Amparo (estamparia) e Bajado (desenho).
O curso acontece às tardes, das 14h às 17h, de segunda a quinta feira. Cada módulo custa R$ 200, e o valor do curso integral será de R$ 600, com material incluso. Há descontos para crianças da mesma família ou grupos de no mínimo cinco crianças. Sócios da Anarte/PE e técnicos e professores da UFPE também têm desconto. Para maiores informações, os telefones da Escolinha de Arte do Recife são 3222-0050 ou 99113-5867.