Esposa de Maurício Kubrusly explica por que topou filme que aborda diagnóstico de demência do marido
Documentário do Globoplay estreou na Mostra de Cinema de Gostoso; afastado da TV, jornalista perdeu a capacidade de leitura e de escrita
A carreira do jornalista Maurício Kubrusly, de 79 anos, é tão vasta que até sua esposa de mais de duas décadas, a arquiteta Beatriz Goulart, ainda descobre reportagens que não conhecia.
Algumas delas são lembradas no documentário “Kubrusly: mistério sempre há de pintar por aí”, como um episódio do “Globo Repórter” sobre o cérebro e uma entrevista com Tom Zé gravada em Nova York.
As maçanetas do apartamento nova-iorquino do tropicalista eram cobertas como uma espécie de capa — Tom Zé explicou que sua “mão morna da Bahia” não aguentava o “metal gelado dessas latitudes”.
Beatriz viu o filme pela primeira vez na última sexta-feira (22), na sessão de abertura da 11ª Mostra de Cinema de Gostoso.
Ao lado dela, Kubrusly subiu ao palco para ser homenageado e foi aplaudido de pé pelo público que lotava a Praia de Maceió, em São Miguel do Gostoso (RN) — as sessões noturnas do festival são ao ar livre.
O documentário, que chega ao Globoplay em 4 de dezembro, passa em revista a trajetória do repórter, dos anos 1970, quando despontou como crítico musical até o sucesso do quadro “Me leva Brasil”, no “Fantástico”, da TV Globo.
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Neste sábado (23), após um debate com a equipe do filme, dirigido por Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, Beatriz conversou com O GLOBO e disse que Kubrusly gostou de se ver na tela e a abraçou bem forte durante a exibição.
Longe da TV desde 2019, o jornalista foi diagnosticado com demência frontotemporal e hoje só reconhece a esposa, com quem vive no Sul da Bahia.
Beatriz conta que o marido tem consciência de sua condição e concordou com o documentário, que chega ao Globoplay em 4 de dezembro.
Ela diz que, vendo o filme, foi duro constatar a piora no estado de saúde dele, ocorrida nos meses que separaram a gravação (no fim do ano passado) e a estreia. Kubrusly já havia perdido a capacidade de ler e escrever e, nos últimos tempos, tem falado cada vez menos.
— A evolução da demência tem em altos e baixos. Mas ele já esteve pior e a consciência que tem de si mesmo continua iluminada — conta ela, que tem 63 anos.
O diagnóstico de demência frontemporal ocorreu há dois anos. Os primeiros sintomas apareceram em 2016 e por um bom tempo os médicos afirmavam que se tratava de Alzheimer, mas Beatriz insistiu até conseguir um diagnóstico e um tratamento certeiros.
Desde que começou a tomar canabidiol, a qualidade de vida Kubrusly melhorou. Ele tem tido um sono mais tranquilo e os impulsos agressivos, comuns em pacientes com demência, desapareceram. Ela conta que a fama do marido às vezes atrapalhava as consultas médicas.
— Tratavam ele como uma celebridade e não como paciente. Perguntavam da televisão e a gente ficava no escuro — reclama ela, acrescentando que Kubrusly enfrenta a doença com serenidade. — Nesse ponto, foi ótimo ele ser ateu, porque não tem Deus para culpar. Ele é bem racional, sabe que isso acontece com muita gente.
Mudança para a Bahia
No documentário, Beatriz conta que ela e Kubrusly se conheceram em um site de relacionamentos. Por conta da fama, ele não revelava seu verdadeiro nome nem mostrava a cara. Ela demorou a saber quem era seu pretendente.
Ao GLOBO, contou que, quando começaram a namorar, o jornalista só saia de casa de carro, de boné e óculos escuros para não ser reconhecido — ele morria de medo de sequestro. Por outro lado, sempre atendeu com prazer os fãs que o abordavam, seja na rua ou em eventos.
Juntos, eles começaram a pegar transporte público e se mudaram para o Centro de São Paulo. Beatriz cita a deterioração da região como um dos motivos para a mudança para a Bahia.
Com o avanço da demência, diz ela, Kubrusly passou a se impressionar cada vez mais com a população em situação de rua e passava o dia perguntando à esposa se elas já tinham se alimentado e onde iam dormir. Todo dia, ele distribuía comida a quem estivesse na calçada. Eles estão na Bahia desde junho de 2022.
— No começo, ele não gostou. Falava: “Por que você não me trouxe para esse fim de mundo? Aqui não tem ninguém. Aqui não é a Bahia nada, só tem gente loira”. Depois, quando a gente começou a passear por outros bairros, mais populares, ele foi gostando. Mas ele já desligou de saber onde está. Antes, a gente andava quilômetros, agora caminhamos uns 500 metros, porque ele se cansa.
Voltando para a pousada após a exibição do filme, Beatriz foi parada por várias pessoas que a parabenizaram, disseram ter se emocionado com a história do amor dos dois e a agradeceram por escolher falar abertamente sobre a doença do marido.
Ela diz que, apesar de algumas críticas que recebeu, optou por expor a intimidade do casal porque o cuidado dos pacientes com demência é um “problema coletivo”.
— A gente não sabe falar sobre demência, não sabe falar sobre a morte, tem vergonha, diz que é para preservar a privacidade das pessoas. Mas eu só penso naquela pichação que fizeram na Rio-92 quando o cacique Raoni e Sting se encontraram: “Ou a gente se Raoni ou a gente se Sting”.
*O repórter viajou a convite da Mostra de Cinema de Gostoso.