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entrevista

"Eu tenho muito orgulho de ter feito esse disco", diz Liminha sobre "Da Lama ao Caos"

Produtor foi escolhido pela Sony para comandar as gravações do álbum de estreia de Chico Science & Nação Zumbi

O produtor musical carioca LiminhaO produtor musical carioca Liminha - Foto: Reprodução Youtube

Quando Chico Science & Nação Zumbi assinaram o contrato com a gravadora Sony, para lançar o que viria a ser o “Da Lama ao Caos”, o líder do grupo tinha em mente dois nomes para assumir a produção do álbum: o “novaiorquino garanhuense” Arto Lindsay ou o baixista norte-americano Bill Laswell.

A gravadora, no entanto, indicou o tarimbado produtor brasileiro Liminha, que assinou produção de grandes discos do rock nacional dos anos 1980. Chico e sua turma, porém, não torceram o nariz e, ainda inexperientes em estúdios, entraram na dança conforme Liminha os foi encaminhando, sem objeções.

Muito se discute se Liminha foi o nome certo para dar forma a “Da Lama ao Caos” – a eterna polêmica sobre o disco não conseguir trazer toda a potência da banda, vez ou outra vem à baila. Independente dessa questão, o resultado foi, como já dissemos anteriormente, um dos 100 melhores discos brasileiros de todos os tempos, segundo a Rolling Stone Brasil.

Em entrevista exclusiva à Folha de Pernambuco, Liminha contou como conheceu Chico Science & Nação Zumbi, como foi a experiência de trabalhar com a banda na produção de “Da Lama ao Caos” e, também, sobre a polêmica de sua produção. Confira:

Como foi o teu primeiro contato com Chico Science & Nação Zumbi, como você conheceu os caras?

Liminha - Bom, o Jorge Davidson, que era diretor artístico, na época, da Sony, falou comigo: “Olha, tem uma banda ‘assim assado’ lá em Recife, que é super legal, a gente gosta demais deles e eles estão mandando muito bem ao vivo, já tem um público que segue os caras”, e me mandou um K7 da banda. Um K7 assim… foi gravado precariamente num estúdio, que eu nem sei como é que era, e obviamente não tinha uma qualidade de som muito boa, a gravação não era uma coisa muito nítida, mas eu senti ali que tinha um conceito, que tinha uma concepção diferente de tudo que rolava na época. Aí eu falei: “Pô, vamo embora, vamo fazer!”, aí, os garotos vieram e a gente foi lá pro [estúdio] Nas Nuvens. Antes disso, parece que eles fizeram um show na Fundição Progresso, que era uma festa da Sony, tocaram, eu gostei muito ao vivo, era muito legal.

Eles não tinham experiência nenhuma de estúdio, que uma coisa é você tocar ao vivo, que você tem todo aquele auxílio visual, né? Pô, a banda no palco era maravilhosa, três alfaias, percussão,o Lúcio era ótimo guitarrista, o Chico, nem se fala, então, era um ótimo performer. Eu vi os caras ao vivo e aí fomos pro estúdio. Eu até brinco que eu “arranquei o couro” deles, quando começou, eles tocavam alguma coisa, eu falava: “Vamos fazer de novo. Vamos fazer de novo. Vamos fazer, pode ficar melhor. Vamos fazer desse jeito”, e os garotos,  eles cresceram muito, eles aprenderam muito no estúdio. É como você fazer uma foto, por exemplo, você só vai saber como é que você tá se você tiver na foto ou se você se olhar no espelho, e eles tiveram oportunidade de ver isso, entendeu? E o resultado foi fabuloso.

Quando você ouviu a fita demo, tecnicamente a coisa bem precária, mas você disse que sentiu algo diferente ali, especial. O que é que você classifica ali, que era diferente, que chamava atenção?

Liminha - Ah, o Maracatu, a fusão de música brasileira com música estrangeira, o que era uma coisa que pouca gente, praticamente ninguém fazia. A banda que fez isso, eu acho que foi uns 10 anos antes, foram os Paralamas, no disco “Selvagem”, onde eles assumiram o lado brasileiro da música, a brasilidade de uma banda que é daqui, não uma banda que seguia pelos moldes internacionais da Inglaterra ou dos Estados Unidos, não. Eles resolveram “Vamos fazer um som brasileiro”, e o Chico Science também tinha essa mentalidade, essa concepção, e isso me chamou muito a atenção, era muito diferente de tudo, de tudo, tudo, tudo. Isso é que é legal, que fez o York Times se interessar pela banda, pelo som da banda, porque chamou a atenção de todo mundo. 

E, também, o que é que acontece? Eles tinham influência, eles juntaram, fizeram uma fusão de música brasileira – Maracatu e os ritmos brasileiros – com hip hop e com o rock. Então,  eles tinham esse trinômio, essa coisa que fez com que o som deles ficasse ainda mais interessante, eles conseguiram pegar um público maior. Porque se fosse, por exemplo, só o Maracatu tocado de uma maneira tradicional, com certeza não ia chamar tanta atenção do pessoal do rock, do pessoal do hip hop. Então, eles juntaram essas três coisas e isso foi  que chegou nesse resultado.

O Paulo André, que era empresário deles, tinha uma loja de discos, e era o Paulo André que trazia toda essa informação que vinha de fora. Eles estavam até mais adiantados que a maioria das outras bandas. Então, eu acho que Chico Science é um som único, até hoje eu considero um disco muito avançado e muito bom, um resultado fabuloso.

Os caras não tinham nenhuma experiência de estúdio, como você falou, você teve que “arrancar o couro deles”, para eles crescerem, evoluírem. E tiveram algumas músicas que foram criadas em estúdio – como “Salustiano Song”, como “Coco Dub” – com a banda, com Chico lá. Eu queria que você comentasse sobre essa capacidade criativa deles dentro de estúdio.

Liminha - Pois é, eles não eram engessados, sabe? Tipo uma banda que ensaia um repertório e só consegue tocar aquilo. Não. Eles tinham disponibilidade e vontade de evoluir. E como eu falei, eles saíram outras pessoas do estúdio, a banda saiu armada até os dentes. Os caras saíram com uma capacidade acima de subir num palco e fazer um show maravilhoso. Eles realmente modificaram as músicas que eles chegaram, eles aceitavam minhas opiniões, eles viram que o resultado tava ficando maravilhoso.

E outra coisa que eu acho que teve um mérito maior é que a gente gravou isso em fita, cara! Não foi em Pró-Tools. Então, o que tá gravado é real, não é aquela coisa “ah, a gente arrumou o ritmo, a gente afinou, a gente… ”, não! Não tinha Pró-Tools, era aquilo mesmo.

Olha, eu “arrancava o couro” deles, porque era “não, não tá bom, vamos fazer de novo, tá? Tá fora do ritmo… ”, fiz loops de baixo, de alfaia, um monte de coisa, e o resultado eu vejo como a gente foi insistente para que a coisa ficasse boa. Tem um mérito muito grande esse disco ter sido gravado em fita. Hoje em dia já fica bem mais fácil, você pegar o negócio, não tá bom, você arruma, você bota no tempo, gravou esse refrão e ficou melhor que o outro, vai no Copy e Paste, com Chico, nessa época, não tinha, não, tinha que tocar mesmo, tinha que cantar afinado, tinha que tocar no ritmo tinha que tocar com o som no timbre certo, era assim.

Fala-se também da tua generosidade, de apresentar alguns caminhos para a banda – por exemplo, o Ebow, que você apresentou a Lúcio Maia e ele adotou ao som dele, em “Salustiano Song”, que abre a música. Eu queria que você falasse um pouco como você procurou, com a tua experiência como como produtor, apresentar caminhos para aquela galera que você via potencial, mas que era verde.

Liminha - É claro, eu coloquei à disposição todo meu conhecimento, todo meu know-how, minha experiência… e dá gosto, né? Para você ver assim que você propõe às vezes uma coisa e a pessoa vai lá, compra sua ideia e executa de uma maneira, com personalidade e o resultado é bom.

O Lúcio é muito bom cara, muito bom guitarrista, estiloso. Eu diria que ele chegou, ele tava à frente dos outros músicos. Porque ele tinha um som de guitarra legal, ele era muito musical. Chico era o cara que chegava com um calhamaço de letras e um monte de disco, a gente ouvia vinil no estúdio. Eles tinham uma informação também muito boa, sabia? Não era uma uma bandinha que os caras não sabem nada, não. Eles sabiam muito, eles de repente só não sabiam executar, e eu acho que eu ajudei a viabilizar as ideias. Eu considero [“Da Lama ao Caos”] um dos melhores discos, eu tenho muito orgulho de ter feito esse disco. Muito, muito.

 

Eu encontrei com o Dengue, quando ele estavam tocando com a Marisa Monte uma temporada, a gente se encontrou num bar ali na Maria Angélica, no Jardim Botânico, aí ele veio, eu fiquei até emocionado, e falou: “Porra, Liminha, você que ensinou à gente um monte de coisa, o disco seguinte foi bom também porque a gente já pegou todo aquilo com você. Eles viraram outra banda, cara, o Chico Science Nação Zumbi, realmente, era muito acima de de outros projetos parecidos, né? Tanto é que não pintou ninguém à altura deles.

Um outro lado da história é que também comentou-se que o disco, de certa forma, não conseguiu trazer o peso da banda, talvez porque era uma sonoridade nova, a questão das alfaias. Houve alguma dificuldade por ser uma sonoridade muito nova, houve esse estranhamento? Teve dificuldade nesse processo ou não? Como é que você vê isso? 

Liminha- É, esse assunto sempre vem à tona. Sabe o que acontece? Aquelas pessoas que viam o Chico com a Nação zumbi ao vivo ficava muito impressionadas, porque quando você vê uma banana em cima do palco, tocando num PA, é uma coisa. Quando você ouve direto numa alto-falante pequeno, numa caixa Yamaha, num alto-falante de 6 polegadas, é outra coisa.

A alfaia, na verdade, eu tava comentando isso com o Kassin. Eu falei assim: “Pô, você já gravou com eles… ”, o Kassin falou assim: “Cara, a alfaia não tem som de nada!”, eu falei “Pois é”. É o que é, mas eles achavam que tinham. Eles até devem ter concordado que não tinha esse som todo. Aí eu mostrei para ele, eu falei “Olha, o negócio é o seguinte, se você tiver num show e tem uns caras de hip hop tocando uma bateria eletrônica, um bumbo de 808, que se usa muito em hip hop, aí eu mostrei para eles, peguei minha bateria e toquei, “Ó, esse é o som de alfaia de vocês”, um som de meio de caixa de sapato, que a gente fazia tudo para fazer pesar mais. Aí, eu tocava o bumbo de 808, era uma diferença absurda, entendeu? Eu falei “O som de vocês não tem esse peso. Claro que a gente pode juntar, botar um som eletrônico junto, mas não esperem que tenha o mesmo grave que tem um bumbo de 808”, e eu acho também que eles viram isso.

E também tinha uma coisa: tem sempre um pessoal crítico que quer dizer “Ah, eu vi ao vivo, ao vivo é muito melhor”. Mas, ao vivo você tá vendo num alto-falante gigante, num sistema. Quero ver isso aí tocar no rádio, num sistema pequeno, não rola. E outra coisa: como eram três alfaias, tem uma coisa de fase. Às vezes, quando uma bate um pouco fora, dá um flan, dá uma metralhada. Quando bate muito junto, às vezes tem um cancelamento de fase. Não soma, entendeu? Acaba subtraindo.

Então, é um instrumento difícil de gravar. É bem difícil. Eu fiz loop, eu gravava a música toda, escolhia um pedaço que tava melhor e editava, e isso em fita, hein? Feito artesanalmente. Fazia um loop, eles tocavam de novo em cima. Era difícil, cara, mas eu acho que ficou muito bom. 

São 30 anos do disco. Trinta anos se passaram, o disco ainda é importante. qual é o legado, qual é a marca que o disco deixa ainda hoje, depois de 30 anos? 

Liminha - Além do legado sonoro, deixa uma ideia de que aqui no Brasil a gente tem coisas muito interessantes, e deixa o legado de que é importante você ter personalidade no trabalho, entendeu? Você não ficar copiando ao pé da letra bandas lá de fora. Eles chamaram a atenção exatamente porque fizeram uma coisa super original. E eles fizeram isso com uma maestria muito grande, muito interessante. Então, eu acho que o legado é esse, que é um disco atual até hoje. 

Teve um programa que eu eu dirigi para a HBO, eu e o Kassin, a gente tocou, fez uma banda que era assim: era o Gil, eu tava de guitarra, o Dengue de baixo, bateria  não sei se foi o Pupillo… cara, as guitarras do Lúcio, para tocar aquilo, meu amigo, é uma pauleira, é difícil, não é fácil, não.

Então, eu acho isso, o legado deles é esse conjunto de coisas boas, né? De musicalmente se ser muito interessante. Eu acho que a as letras também… retratando as coisas do Nordeste, “a cidade não para.. o de cima sobe, o debaixo desce”, tem mil coisas legais ali, tem uma crítica social ali bem interessante. Então, letra legal também. Isso é muito importante. Então, é isso: uma combinação de ideias fantásticas, principalmente a poesia, é muito legal a sonoridade, é muito único cara. É uma banda que tem um respeito danado. 

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