Felipe Hirsch fala sobre seu espetáculo "Lingua Brasileira", com música de Tom Zé
Peça idealizada a partir da canção homônima do compositor baiano foi apresentada no Festival Mirada, em Santos; confira a entrevista exclusiva
O espetáculo “Língua Brasileira”, do coletivo Ultralíricos (SP) foi apresentado neste mês de setembro no Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas (Mirada), em Santos (SP). Em entrevista exclusiva à Folha de Pernambuco, o diretor Felipe Hirsch falou sobre a pesquisa, produção e concepção da peça, idealizada a partir da canção homônima do compositor baiano Tom Zé, do álbum “Imprensa Cantada” (2003) que, por sua vez, criou uma trilha sonora inédita para o roteiro, que deu origem ao seu mais novo disco (“Língua brasileira”), lançado pelo selo Sesc.
Em cena, um elenco formado por Amanda Lyra, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Laís Lacôrte, Pascoal da Conceição e Rodrigo Bolzan com trilha ao vivo executada pelos músicos Fábio Sá, Fernando Sagawa, Luiza Brina e Thomas Harres, sob direção musical de Maria Beraldo.
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“Língua Brasileira” traça a epopeia dos povos que formaram o português falado no País, os seus mitos e cosmogonias, passando pelas remotas origens ibéricas, por romanos, bárbaros e árabes, pela África e a América nativa. A peça apresenta nove canções inéditas do compositor baiano, além das músicas “Língua Brasileira” ("Imprensa cantada", 2003) e “Nave Maria” ("Nave Maria", 1984). O espetáculo será apresentado em Belo Horizonte, Porto Alegre e Lisboa, junto com o documentário que Hirsch dirigiu a convite do Museu da Língua Portuguesa.
Como se deu o encontro com Tom Zé até surgir o "Língua Brasileira"?
A gente vinha de um trabalho com esse coletivo de artistas, o Ultralíricos, chamado “Selvageria”, sobre documentos históricos da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo (USP). E foi um trabalho muito importante porque descobrimos muita coisa, materiais que não estavam sequer traduzidos para o português. Documentos históricos que falam sobre a nossa história, contam a história do Valongo, no Rio de Janeiro, e muitas outras.
A gente queria dar o próximo passo e o Tom [Zé] vinha assistindo a algumas peças nossas já há muito tempo. Sempre fui muito ligado à obra dele e muito apaixonado por tudo o que ele fez. Eu lembro que a primeira coisa que ele viu foi em 2005, eu ainda era a Sutil Companhia. Então eu fiz um trabalho no Chile, chamado “Democracia”, com Alejandro Zambra e ele foi assistir. E mandou discos para os artistas chilenos e a gente adorou o encontro. Ele me entregou, na época, o “Estudando a Bossa” na mão, falando assim: ‘Pensa em fazer alguma coisa com isso’.
Então eu fiquei um tempo escutando aquilo, mas não encaixava. Comecei, obviamente, a escutar a obra dele de novo e aí no “Imprensa Cantada” tinha lá a faixa “Língua Brasileira”. Era quase um single, uma coisa diferente, isolada do contexto. Tava ali, muito bem encaixada, mas não exatamente. E aí eu levei pra ele. E a Neusa [esposa de Tom Zé] gosta muito da língua brasileira. E eu levei para ele falei assim: "olha, aqui me parece que tem um passo mais coerente com o que a gente está fazendo”. E ele adorou a ideia. E aí eu voltei para casa com um super problema - isso foi em 2018. Como é que eu vou começar a trabalhar a formação da nossa língua? Preciso de muita gente para me ajudar nisso, pensei.
E como você encontrou os colaboradores para lhe ajudar nessa pesquisa?
Lembrei de cara do Caetano Galindo, que é uma pessoa que admiro muito, um filólogo, um cara que tem uma capacidade imensa até de ser didático para gente que iria fazer [o espetáculo], em relação à formação da nossa língua. E ele foi me apresentando também às pessoas que eram especialistas em cada área. E foi um trabalho longo. E essas pessoas iam abrindo e formando uma teia gigantesca. E aí você vê a paixão das pessoas das universidades, tanto dos acadêmicos, quanto das pessoas que começamos a conversar de outros países. Então, chegava no meu Whatsapp leituras de textos de gente do Irã, de Macau, de Angola… Começou a chegar muito material.
A gente começou a fazer uma grande pesquisa porque eu sabia que a peça não poderia ser didática. Então, a gente começou a desenhar um passeio poético por onde a língua portuguesa passou. Desde a reconstrução do protoindo-europeu até toda a história dela na península Ibérica, com árabes, bárbaros e celtas.
Discuti muito com Tom Zé sobre um artigo importante do Nicolau Sevcenko, em que ele fala que nós somos mais celtas que latinos. Tem até uma cena na peça em que um ator fala em protocelta e o outro em latim e você vê que a palavra veio do protocelta e não do latim. A gente acha que a língua portuguesa veio do latim, mas as palavras já estavam lá. Então, que comunicação é essa que a gente tem dos povos celtas e do Hy-Brasil e a ideia toda mitológica de uma ilha que nasceu com esse nome?
A peça traz um olhar sobre a língua do ponto de vista político, dando voz à resistência dos povos originários em relação aos colonizadores, você pode comentar sobre isso?
Se você está falando da formação de uma língua, está falando necessariamente de glotocídio. Achar o equilíbrio - por isso que a frase do poema "Língua Portuguesa", de Olavo Bilac, é tão importante: “És a um tempo, esplendor e sepultura”. É isso a língua portuguesa, é isso o nosso país: esplendor e sepultura. De um tempo pra cá, temos discutido mais sobre as sepulturas, o genocídio das línguas e das etnias todas. É o assunto que a gente tem que superar. Como superar as tragédias do holocausto, da escravidão e dos povos indígenas que continuam sendo atacados. Inclusive, o documentário que estamos fazendo e que estreia no Festival do Rio em outubro, o ”Nossa Pátria Está Onde Somos Amados”, fala justamente sobre isso. Da tragédia vem o esplendor. O problema é que não podemos ficar só nisso, na ideia de uma nação mestiça e esplendorosa. Ela existe? Existe. Porém ela é feita sobre duas tragédias enormes que são os extermínios indígena e a escravidão.
Como se deu a preparação do elenco?
Uma característica do Ultralíricos é de juntar vários artistas. Na Sutil Companhia, que era meu último grupo há mais de dez anos atrás, eu era hiper centralizador. E eu cheguei a uma estafa, não física, mas daquele modelo de ensaio. Eu tinha vergonha de falar comigo que não gostava de ensaiar mais. E quando parei, e a gente começou a reconfigurar a ideia de ensaio de pesquisa, que veio com a Ultralíricos, a coisa ficou muito prazerosa para mim, porque a gente junta muitos artistas e começa a discutir em um longo período de trabalho à mesa. E é o trabalho mais importante que a gente faz, onde a gente vai pesquisando e eu vou trazendo coisas, alimentando e eles vão filtrando. Nossa parte intelectual, racional, estudiosa e também baseada na sensibilidade deles, no instinto deles, que são pessoas muito rodadas, muito bem formadas, digamos assim. Até que a gente começa a arriscar, colocar em prática e tentar criar uma forma, uma linguagem para o que a gente estudou.
Pouco antes de estrear, o espetáculo teve que ser suspenso por conta da pandemia. Como foi esse processo para a Ultralíricos?
Para se ter uma ideia, a pandemia chegou dez dias antes da estreia no teatro. Tínhamos três músicas inéditas do Tom Zé. Só que ele estava trabalhando tão profundamente nesse trabalho - ele conta isso, estou repetindo o que ele fala - que ficou uns seis meses sem saber o que estava acontecendo. Ele já estava em casa trabalhando e continuou trabalhando na pandemia porque sacou que ia fazer um disco daquilo. De três músicas, o espetáculo subiu para nove inéditas e mais as canções “Língua Brasileira” e “Nave Maria”. Isso enriqueceu, mas obviamente a gente teve que mexer muito na estrutura. E o que acontece, acho que de primordial nesses dois anos, para além de toda a questão na nossa cabeça - a gente mudou, é um trauma enorme - mas no caso da peça, acho que a gente editou, amadureceu e ela se tornou mais limpa, bem editada.
Como foi o processo de criação da trilha sonora do espetáculo junto a Tom Zé? Qual a importância da música na narrativa de “Língua Brasileira”?
Eu entregava os textos e dizia mais ou menos o que seria a cena e ele ia se fascinando com aquilo e pesquisando, conversando muito com Caetano Galindo e depois saia com uma obra prima. Então, foi tudo muito composto sobre o roteiro. Além da parte musical, no espetáculo, a parte dos textos também é música. Em certo momento, achei que estava fazendo um concerto, uma partitura musical mesmo com os textos. Inclusive, a escolha sobre o que legendar e o que não legendar se deu para destacar essa musicalidade em certos momentos.
Em certo momento, a gente pensou que era importante falar que o iorubá estava lá há três mil anos ou mais e que o protoindo-europeu é algo remoto e que estavam aqui os indígenas muito antes dessa viagem da língua começar, então, a gente pensou em um prólogo cosmogônico e veio “Nave Maria”, que foi a única música não inédita que entrou no espetáculo depois. Tom Zé queria regravar, mas eu falei: “não faça isso, pelo amor de Deus, está perfeita!"
Por que ter música ao vivo em cena?
Isso é uma característica da Ultralíricos. Desde a primeira peça que a gente encena com música ao vivo. Eu sabia que a Ultralíricos teria uma veia Brechtiana e que a música teria uma um papel muito forte no trabalho. De lidar com música ao vivo, com compositores desse nível, a Maria Beraldo, o Arthur de Faria, o Tom Zé agora e todas as pessoas que colaboraram com esse trabalho musical.
O espetáculo trouxe vários desdobramentos com obras inéditas em diversas linguagens, como o novo álbum de Tom Zé e até um documentário, correto?
É um documentário que não é de maneira nenhuma relacionado à peça mas, sem dúvida nenhuma, nasce desse projeto. Quando concluímos a primeira temporada lá em São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa me convidou pra fazer uma curadoria e uma direção artística de um evento grande dentro da instituição. Então eu tive a ideia de fazer um documentário um pouco mais didático e nessa ocasião também saiu o livro do Caetano Galindo sobre esse processo, chamado “Latim em pó”. A gente fez um evento muito grande dentro do museu, sem grana, tal, mas com a qualidade incrível de convidados. E eu resolvi registrar isso e pedi ao Sesc uma verba para que a gente conseguisse fazer. E ficou lindo porque o [Ailton] Krenak, o Baniva estava lá, o Silvio de Almeida e pessoas muito importantes para falar sobre esse assunto. E aí a gente acabou editando esse documentário e ele estreia no Festival do Rio, na mostra dos documentários e depois vai para São Paulo. A gente deve ir a Lisboa junto com o festival de documentário. Então a gente leva o documentário e a peça. Ótimo.
Qual a mensagem que você pretende entregar ao povo brasileiro nesse espetáculo?
A gente usa como metáfora e, mais do que metáfora, um símbolo da língua. Mas, na verdade, a gente está discutindo as questões que estão na pauta do Brasil. Eu só espero que a gente consiga sair nos próximos anos para um degrau acima da discussão. Porque a gente já estava começando uma discussão, a gente foi achatado para tentar defender direitos básicos até conseguir falar sobre esses assuntos. Então a gente volta de novo a ganhar um pouco de ar, de fôlego para falar sobre isso, mas ainda assim eu espero que a gente suba alguns degraus nessa discussão, que a gente consiga realizar que o Brasil precisa ser não um paciente que tem que ser tratado com paliativos, com pequenas brechas - como diz o Simas no Rio de Janeiro - onde a arte pode se manifestar, para tentar defender pequenos direitos, direitos importantíssimos e que não são respeitados. Eu espero que o Brasil possa de fato mostrar - e com isso eu faço coro ao Caetano - que ele tem a chance de mostrar que ele pode salvar o mundo mesmo.
E por onde é isso? Parece simplesmente um discurso utópico. Teve que se mostrar para o mundo, mostrar que a gente é esse continente gigantesco que fala uma língua estranha. Tão estranha quanto o russo. E que essa mistura que vem, obviamente, de um de um caráter trágico, que ela seja capaz realmente de ser traduzida para o mundo como algo esplendoroso.
No entanto, acho que são questões muito profundas, sociais e políticas, para serem resolvidas de uma hora pra outra, sabe? Eu não vejo isso acontecendo na minha vida, na vida do meu filho. Mas é isso. Nós somos uma gota no oceano do tempo. Então, vai levar um tempo, mas esse País vai conseguir mostrar e traduzir de alguma maneira como a música brasileira, por exemplo, talvez tenha conseguido, o que ele é e do que ele é capaz. A língua brasileira é um pouco isso. É uma tentativa usar como símbolo a língua, mas você falar sobre uma poética, uma poética política, que passa pela política eu quero dizer, mas uma poética também do esplendor musical.
Quando você sai, por exemplo, de algo tão científico, como é o caso da reconstrução do próprio indo-europeu, que é uma língua absolutamente distante do que a gente imagina que se fale mas é lá o início de toda essa língua. E você passa pela mistura das línguas africanas, indígenas, etc, e começa a reconhecer um pouco as palavras que nós falamos no dia a dia e depois deságua em Panamérica ou em Haroldo de Campos, em “Galáxias”, e você vê também toda nobreza e a sofisticação que a língua portuguesa já alcançou e mais que alcançou, produziu para o mundo. Então você ter “Galáxias”, por exemplo, traduzido ou entendido pelo mundo é como você ter Joyce, é como você ter Ulysses, é como ter “Finnegans”, coisas assim nesse nível de sofisticação da língua, sabe?
Eu luto muito para que isso aconteça antes de tudo da América Latina. Por isso que os nossos projetos anteriores são muito ligados a América Latina, porque o Brasil não reconhece da América Latina um vizinho, principalmente essa elite que acha kitsch a América Latina e acha Miami algo a se louvar. E digo isso ao contrário, porque tive a oportunidade de trabalhar na Argentina, no Uruguai e no Chile, e percebo a ignorância que existe deles em relação ao Brasil. Isso é culpa deles e culpa do Brasil. Pelo fato desses países terem mirado mais a América do Norte.
*O repórter viajou a Santos a convite do Mirada