Ferramenta de IA usada por produtoras de Hollywood liga alerta na indústria antes do Oscar; entenda
"O brutalista" e "Emilia Pérez" estão entre os filmes citados que usaram IA
A inteligência artificial (IA) mais uma vez disparou o alarme em Hollywood. Recentemente, a indústria voltou seus os olhos para "O brutalista", filme estrelado por Adrien Brody que despontou como um dos favoritos do Oscar após receber dez indicações, após de ter sido revelado que durante a pós-produção o Respeecher, uma ferramenta de clonagem de voz, foi usado para melhorar o sotaque húngaro dos atores.
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Também circularam rumores sobre o uso de IA para projetos de edifícios, mas seu diretor, Brady Corbet, negou tais afirmações.
As críticas explodiram nas redes sociais. “Eu entendo as limitações de um orçamento de US$ 6 milhões e o desejo de fazer grandes coisas com esse orçamento, mas o sotaque de Brody era tão notoriamente ruim que eles precisaram usar IA para gerar parte de seu desempenho?”, escreveu um usuário no Reddit.
“Caso você precise de algo para estragar o seu dia, 'O brutalista' usa IA”, diz um post no X. Nesse sentido, um espectador considerou que o Oscar deveria proibir a seleção daqueles filmes que usam IA “para substituir trabalhadores”.
Tanto o diretor do "O brutalista" quanto o restante da equipe deram declarações para defender sua decisão.
“As performances de Adrien [Brody] e Felicity [Jones] são completamente próprias. A inovadora tecnologia Respeecher foi usada apenas na edição de diálogos húngaros, especificamente para refinar certas vogais e letras com maior precisão. Nada na língua inglesa foi alterado”, disse Corbet. Sublinhou ainda que se tratou de um “processo manual” com o objetivo de preservar a autenticidade das atuações, sem as substituir ou alterar, e feito com “o máximo respeito pelo ofício”.
“Tivemos muito cuidado em manter suas interpretações. Basicamente, trata-se de substituir letras aqui e ali”, acrescentou Dávid Jancsó, editor do filme, em entrevista ao Red Shark News.
Por sua vez, ele mencionou a intensa preparação de ambos os atores: “Fizeram um trabalho fabuloso, mas também queríamos aperfeiçoá-lo para que nem os nativos notassem a diferença”.
Por sua vez, Brody destacou que conhece profundamente o idioma, já que parte de sua família vem da Hungria.
“Cresci com essa língua falada em minha casa. Na verdade, até integrei, no diálogo húngaro, palavrões que não estavam no roteiro”, explicou o ator no podcast Little Gold Men da Vanity Fair. E, tal como os seus colegas, insistiu que a IA não alterava a essência do processo.
"O brutalista" não foi o único filme nesta temporada de premiações a fazer uso de IA. Em "Emilia Pérez", polêmico musical dirigido por Jacques Audiard e com 13 indicações ao Oscar, o Respeecher também foi utilizado para melhorar a voz da atriz Karla Sofía Gascón em cenas musicais e corrigir a pronúncia espanhola de Selena Gomez e Zoe Saldaña.
Como funciona o Respeecher?
Respeecher é uma empresa de tecnologia ucraniana especializada em clonagem de voz de IA.
O resultado não é uma fala robótica, apresentando todas as emoções, entonações e nuances de uma voz humana real, segundo seu site oficial.
O procedimento consiste em fazer gravações da “voz alvo” (a voz que está sendo replicada) e depois treinar o sistema. Depois que o software processa os dados, eles são aplicados a um “orador fonte” (o ator que lê as falas) e são feitos os ajustes necessários.
Nos últimos anos, essa ferramenta começou a ganhar espaço em diversas áreas da indústria do entretenimento, como cinema, televisão e videogames.
Um dos casos mais emblemáticos é o episódio final da segunda temporada de "The Mandalorian", série do universo Star Wars, onde o Respeecher ajudou a recriar a voz jovem de Luke Skywalker — interpretado por Mark Hamill —, em vez de usar a voz real do ator.
Neste cenário de fortes avanços tecnológicos, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas avalia mudanças nos requisitos de indicação para a próxima edição do Oscar, com o objetivo de tornar obrigatória a informação, por parte da produção, se houve uso de IA, conforme noticiou a Variety na última sexta-feira. Essas mudanças seriam anunciadas em abril e, até o momento, a Academia oferece apenas um formulário opcional de divulgação quanto ao uso de IA.
Para Rodrigo H. Vila, fundador e sócio da produtora Cinema 7 Films, e diretor dos filmes "A carta" e "O último refúgio", a IA é uma “ferramenta muito poderosa que já está mudando a indústria” e, apesar das atuais resistências quanto à sua implementação, no médio prazo será uma tecnologia aceita por todos.
“Essa foi a lógica da história do cinema. Começou em silêncio, depois o som foi adicionado; Começou em preto e branco, depois virou colorido e depois virou 3D. Se for uma ferramenta útil, não distorce o trabalho do ator”, disse ao LA NACION.
Nessa linha, Pablo Menegol, especialista em IA e ética, e assessor do departamento de Novas Tecnologias da Argentores, destacou os benefícios do uso dessas tecnologias, como economia de tempo e dinheiro.
“Os custos continuarão a cair à medida que a tecnologia avança e com isso veremos IA em quase todos os cenários complexos”, garantiu.
Apesar das vantagens, Ramiro San Honorio, roteirista, diretor audiovisual e diretor da licenciatura em design audiovisual da Universidade Argentina de la Empresa (UADE), disse que ferramentas como o Respeecher podem distorcer a autenticidade do ator.
“Há ajuda técnica e temos que nos perguntar até que ponto é necessário que uma história, uma interpretação, mude a linguagem ou recorra à IA para se adaptar à linguagem de origem da história”, explicou. Na verdade, em Hollywood existem muitos longas-metragens onde, em vez de usarem a linguagem pertinente à trama, os atores falam em inglês.
IA, o novo inimigo do cinema?
Em 2023, Hollywood levantou a voz contra o avanço da IA com a greve do Writers Guild of America (WGA) e do Screen Actors Guild (SAG-AFTRA). Desde então, as críticas e preocupações em relação a esta tecnologia cresceram, mas também causaram uma forte divisão dentro da indústria entre aqueles que apoiam a sua utilização e aqueles que não o fazem.
Na semana passada, o ator Nicolas Cage se manifestou contra a IA e expressou que “os robôs não podem refletir a condição humana para nós”.
Em contraste, para o cineasta James Cameron, “a interseção de IA generativa e imagens CGI é a próxima onda” e “abrirá novos caminhos para os artistas contarem histórias de maneiras que nunca poderíamos ter imaginado”.
Porém, a grande questão é: se a história do cinema está enraizada nos avanços tecnológicos, por que existe tanta resistência na indústria ao uso moderado da IA, mesmo quando as vantagens são claras? San Honorio indicou que esta é a primeira vez que “a tecnologia compete contra o homem”.
“O cinema é uma área que nunca expressou realmente medo da tecnologia, mesmo quando o som ou a cor apareceram. Foram tecnologias revolucionárias que abriram novas oportunidades de emprego”, explicou à publicação.
Por outro lado, ferramentas como o Respeecher poderiam, por exemplo, prejudicar o trabalho de dubladores, tradutores e formadores dialéticos.
Vila ilustrou esse perigo com uma potencial negociação entre o ator Brad Pitt e uma grande plataforma de streaming para dublar seus filmes em diferentes idiomas com sua própria voz.
“O ator está sendo pago, mas ao mesmo tempo está tirando trabalho dos dubladores. Se não houver regulamentação ou algo que os ajude, dentro de alguns anos eles não terão mais trabalho. Aí você tem um dilema: quem está certo?", afirmou.
Perante esta incerteza, ambos os especialistas apontaram a regulação como essencial.
“Hoje, é necessária regulamentação para ir um pouco mais devagar e compreender as consequências de todos os tipos que a IA está trazendo e trará”, disse Vila.
Transparência
O surgimento da IA levanta debates éticos em torno da sua utilização. É por esta razão que alguns realizadores tomaram a decisão de informar os seus espectadores se um filme inclui esta tecnologia.
“Nenhuma IA generativa foi usada na produção deste filme”, dizem os créditos de "Herege", filme de Scott Beck e Bryan Woods estrelado por Hugh Grant.
Os especialistas consultados por LA NACION veem o estabelecimento desta comunicação com o público como uma medida positiva.
“A transparência deve ser total. Se a IA fosse usada para modificar vozes, rostos, movimentos ou roteiros, deveria haver um aviso claro nos créditos. Não apenas 'usamos IA', mas especificamos o que foi feito com IA e por quê", disse Menegol.
Nesta linha, Vila expressou que se trata de uma ação “honesta” para com o espectador, embora com o passar do tempo não seja mais necessária.
“No futuro, quando a IA já estiver instalada, não será mais necessário comunicá-la”, resumiu.
Entre outros aspectos éticos que deveriam ser implementados, Menegol destacou o consentimento explícito dos atores ao modificarem sua voz ou imagem, bem como que recebam uma compensação justa por isso.
Esses pontos são essenciais para o Menegol. Caso contrário, poderíamos entrar numa espécie de “dessensibilização pública”.
“Se nos acostumarmos com a IA modificando tudo no cinema, podemos chegar a um ponto em que não saberemos mais distinguir o que é real do que é falso. Isso pode afetar a forma como percebemos o desempenho humano, nossa confiança no que vemos na tela”, concluiu.