Destaque no Festival do Rio, 'Malu' é a vida da atriz, contados por seu filho e diretor Pedro Freire
Filho da atriz com Herson Capri, diretor classifica o filme, que chega ao circuito nesta quinta-feira (31), como um 'processo de autocura'
Um caixão pintado de amarelo, muita purpurina, música, baseados e garrafas de vinho circulando. Assim foi o primeiro velório ocorrido na sede do Teatro Oficina, em São Paulo, há 11 anos. Velava-se ali o corpo de Malu Rocha, artista paulista que, ao 65 anos, acometida por uma doença rara, saiu de cena naquele domingo, 9 de junho de 2013. Malu era o nome artístico de Maria de Lourdes Carvalho Carneiro, atriz natural de Ourinhos, interior de São Paulo, que teve carreira relevante, embora oscilante, no teatro e na TV. “Malu”, que estreia hoje nos cinemas, é um recorte biográfico e impressionista de Malu Rocha, e é também o primeiro longa-metragem do seu filho, o cineasta Pedro Freire.
Passado o furor de uma estreia elogiada no Festival de Sundance, em janeiro — a revista Variety o classificou como “magnificamente interpretado”; o site Indiewire, como “explosivo” —, “Malu” foi destaque no último Festival do Rio. A produção da TvZero com a Bubbles Project ganhou prêmios em quatro categorias: melhor filme de ficção (dividido com “Baby”), melhor roteiro, melhor atriz (Yara de Novaes, que faz Malu) e melhor atriz coadjuvante — duplicado pela organização e entregue às atrizes Juliana Carneiro da Cunha (Dona Lili) e Carol Duarte (Joana), que fazem a mãe e a filha, respectivamente, da protagonista.
"Comecei a pensar neste filme no velório. Eram tantos amigos de teatro, tanta gente emocionada, que soube que queria fazer um filme sobre minha mãe e que seria meu primeiro longa " diz Pedro, de 43 anos. "Demorei pra começar, tive o período de luto, mas também tive de criar coragem. O processo foi duro, difícil, chorei muito. Mas decidi que não tinha que ser um filme pra mim, tinha que ser um filme pro publico. Então, era assim: 'isso aqui é pra minha analista, isso aqui é pro filme'. Mas acabou sendo um processo de autocura"
"Quase um documentário"
“Malu” é, sim, um filme sobre Malu Rocha, mas também é uma leitura melancólica sobre o cambaleante ofício de artista no Brasil. Com a lente focada num momento difícil da vida da atriz, já mergulhada em franco ostracismo, o filme retrata uma Malu apertada de grana, morando em uma casa precária numa comunidade litorânea na Zona Oeste do Rio de Janeiro nos anos 1990, local que a atriz tinha o sonho de transformar em centro cultural. Ela divide a residência com Lili, sua mãe, uma senhora conservadora, e recebe a filha, Joana, uma jovem artista, com quem também tem suas diferenças.
Mesmo diante das dificuldades, lembra o filho, sua mãe mantinha o brilho nos olhos e o ar revolucionário. “Um vulcão”, resume Pedro, fruto do casamento de Malu com o ator Herson Capri.
"Cerca de 80% do filme é calcado no que aconteceu. Meu melhor amigo, quando viu, disse que era quase um documentário. Minha irmã chorou muito assistindo afirma o cineasta"
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Pedro demorou cinco anos para escrever o roteiro. Com uma carreira já percorrida como diretor, com diversos trabalhos feitos sobretudo para televisão, ele também se calejou em curtas-metragens premiados antes de se batizar à frente de um longa. Quis que esta estreia fosse algo pessoal e, por isso, chegou a recusar propostas para dirigir filmes de forte apelo comercial, incluindo “Minha mãe é uma peça 2”. Viu na trajetória de sua mãe uma oportunidade para contar uma história com propriedade. E pôs ali, em cena, suas memórias mais íntimas. Joana, personagem que é filha de Malu no filme, é um alter ego seu e de sua irmã, a atriz Isadora Ferrite.
Não houve testes para a escolha das atrizes principais. De diferentes gerações, Juliana, 75 anos, Yara, 58, e Carol, 33, entraram em sintonia após três semanas de ensaio que incluíram improvisações de cenas de alta carga emocional, ancoradas na prática do russo Constantin Stanislavski (1863-1938).
"A ideia é não decorar enquanto não improvisar todo o texto. Depois, fica muito mais fácil de decorar porque o elenco já sentiu" diz o diretor.
A proximidade do diretor com a trama contada não limitou o trabalho das atrizes, dizem elas. Yara de Novaes, que encarnou a mãe de Pedro no filme, diz que “por mais que a obra partisse de memórias, ele estava ciente de que estava fazendo uma obra de arte”.
"É um filme universal"
"Era um caldo mais grosso que a gente tinha, essa mistura de arte com vida real que deixava a obra mais interessante. Ele deixou emergir a Malu que tem a ver comigo, com a Carol, com a Juliana e com o Atila Bee (que interpreta o personagem Tibira, amigo de Malu no filme). Não havia a Malu. Tinha uma Malu que se encontrou com as que a gente fez" diz Yara de Novaes.
No alto de uma carreira consolidada no teatro — ela integra o lendário Theatre du Soleil, em Paris, onde vive há mais de 40 anos —, Juliana Carneiro da Cunha diz que seu papel em “Malu” calhou com um momento em que ela está curtindo mais o trabalho atrás das câmeras. E elogia as parceiras em cena.
"Yara, Carol e eu foi um encontro dos deuses do cinema. Três atrizes de teatro que imediatamente sentiram confiança uma na outra" diz Juliana, citando Tolstói para elogiar o filme. "Ao meu ver, é um filme universal, se você quer falar para o mundo, fale da sua aldeia"
Carol Duarte, que já nutria admiração por Juliana e Yara, diz que teve que se acostumar “porque muito respeito às vezes trava a gente”. E reforça o caráter quase independente do filme.
"Foi feito no sangue e no suor. Não gostaria de romantizar esse modo de fazer cinema, mas, com baixíssimo orçamento, conseguimos fazer um filme com essa importância. Na primeira versão do roteiro tinha a cena do velório no Teatro Oficina, mas foi tirada porque não havia orçamento"