Filmes feitos por indígenas crescem sob a pressão do governo Bolsonaro
Produções militantes dirigidas por artistas de diferentes povos ganham destaque em festivais temáticos
Ziel Karapotó tinha mais de 18 anos quando pisou em um cinema pela primeira vez. Menos de uma década depois, aos 26, ele deixou as poltronas das salas para se sentar atrás das câmeras.
Indígena karapotó, do aldeamento Terra Nova, no agreste alagoano, Ziel é diretor do curta-metragem "O Verbo se Fez Carne", no qual ele aparece sozinho em cena, usando as vestimentas tradicionais do seu povo, enquanto manipula uma bíblia e uma língua de boi.
Mistura de filme e performance, já que o diretor é também artista visual, o curta fala de maneira alegórica sobre o etnocídio sofrido por algumas populações e foi selecionado para o Inffinito Festival, que neste ano recebe uma mostra dedicada inteiramente ao cinema indígena.
Leia também
• Covid-19 já alcança mais da metade dos povos indígenas
• Invasões de terras indígenas aumentam 135% no primeiro ano do governo Bolsonaro
• Medida provisória autoriza Funai a criar barreiras sanitárias em áreas indígenas
O caso de Ziel se repete com cada vez mais frequência no país. De um lado, está o amplo acesso à internet e à tecnologia no país, o que fez cineastas de diversos povos conseguirem produzir nos últimos anos seus próprios filmes sem a presença dos estúdios e das produtoras. De outro, estão os próprios festivais, interessados em apresentar narrativas mais diversas e fora do eixo.
De acordo com o diretor karapotó, esses novos filmes costumam provocar estranhamento no público, acostumado há décadas a ver a questão indígena retratada nas telas a partir de um viés antropológico e pela ótica de artistas que veem tudo de fora.
"A gente precisa ressignificar o cinema, que muitas vezes só colabora para a invisibilidade e o apagamento", diz. "É hora de utilizá-lo para falar das nossas lutas."
Graciela Guarani, que está em cartaz no mesmo festival com o documentário "Meu Sangue É Vermelho", concorda com Ziel e acredita não ser possível pensar no cinema contemporâneo indígena sem ser pelo viés militante e como uma ferramenta política para dar visibilidade a opressões –sofridas não apenas por essas populações, mas também por negros, mulheres ou grupos LGBT.
Mesmo assim, ela diz sonhar em construir narrativas sobre outros temas. "Quero que um dia as pessoas possam desfrutar da nossa arte sem a condicionante de ela levar a voz da sobrevivência, que está tão impregnada em tudo o que a gente faz hoje."
O longa de Graciela apresenta a trajetória do rapper guarani Kurumin MC. O músico, nascido em uma aldeia no extremo sul de São Paulo, canta sobre a demarcação de terras e a atual situação indígena no Brasil –e ficou famoso quando, na Copa do Mundo de 2014, no Brasil, apareceu em campo com uma faixa na qual estava escrito "demarcação já".
O longa traça ainda um paralelo com as violações de direitos humanos sofridos por povos na região do Mato Grosso do Sul, onde a diretora nasceu, e termina com um trecho de um pronunciamento feito em 1988 pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, em que ele afirma que a cavalaria brasileira foi incompetente por não ter exterminado todos os indígenas.
Bolsonaro, aliás, é figura presente em uma série desses filmes. Para Graciela, o atual governo ameaça a sobrevivência de todas as populações indígenas. "Isso tem sido tratado com certa normalidade por parte do governo –e é muito assustador. É um projeto genocida," diz.
A política brasileira atual grita também em "Ivy Reñoy - Semente da Terra", dirigido coletivamente pela Associação Cultural de Realizadores Indígenas, a Ascuri, que está em cartaz no Cine Kurumin, festival dedicado ao cinema indígena.
A produção é composta por imagens feitas uma semana depois da visita do então deputado federal Jair Bolsonaro a Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, em 2016. Na ocasião, ele afirmou que, se eleito presidente, o cartão de visita dos fazendeiros seria um cartucho de balas. O resultado, segundo o documentário, foi uma série de ataques de milícias armadas aos acampamentos guarani-kaiowá na região, registrados pelos cineastas.
"Como a gente tem a habilidade de manejar a câmera, fomos para o meio dos conflitos quando eles aconteceram," diz Gilmar Kiripuku Galache, membro da Ascuri .
Mas a chave da militância e do cinema de denúncia não é apenas dos cineastas -está também nos festivais que exibem esses filmes.
"Pensamos que seria muito interessante dar voz para cineastas indígenas neste momento tão complicado que o Brasil está passando," diz Adriana Dutra, uma das organizadoras do Inffinito Festival.
Thaís Brito, diretora do Cine Kurumin, que há sete edições reúne filmes nacionais e internacionais, destaca que essas produções trazem uma visão muito própria sobre questões que afetam a todos -caso das epidemias. "Os povos sofrem com doenças trazidas pelos não indígenas desde a colonização e têm a experiência de resistir a elas."
Como política de diversidade, os dois festivais têm curadoria compartilhada com cineastas indígenas. "Já é um começo, mas quero ver nossa produção dentro das competições principais," afirma a cineasta Graciela Guarani.
IVY REÑOY - SEMENTE DA TERRA
Quando: Até 20/10
Onde: cinekurumin.org
Preço: Grátis
Produção: Brasil, 2018
Direção: Direção coletiva da Ascuri
MEU SANGUE É VERMELHO
Quando: Até 23/10
Onde: inff.online
Preço: Grátis
Produção: Brasil, 2019
Direção: Graciela Guarani, Alexandre Pankararu, Tonico Benites, Thiago Dezan e Marcelo Vogelaar
O VERBO SE FEZ CARNE
Quando: Até 23/10
Onde: inff.online
Preço: Grátis
Produção: Brasil, 2019
Direção Ziel Karapotó