Game 'The Last of Us Part 2' insere personagens lésbicas e trans e atiça conservadores
O jogo é a continuação do premiado "The Last of Us", de 2013, que figurou em inúmeras listas de melhores games da década de 2010
"The Last of Us Part 2" só foi lançado nesta sexta (19), mas há meses já vem causando rebuliço entre gamers conservadores. Entre os vários reclames, destaca-se o fato de a protagonista Ellie ser lésbica e antagonizada por outra mulher, Abby, que é "puro músculo, um caminhão", nas palavras da roteirista do game, Halley Gross.
Completam o caldeirão um personagem trans, um culto religioso e o fato deste violento mundo pós-apocalíptico não ser dominado somente por homens -mulheres ocupam posições de mando e de destaque, além de serem boas de briga. Em redes sociais, alt-rights apelidaram o jogo de "The Lesbian of Us" e foi invocada a quimera da "ideologia de gênero".
O jogo é a continuação do premiado "The Last of Us", de 2013, que figurou em inúmeras listas de melhores games da década de 2010. A trama original segue a dupla Joel e Ellie em sua jornada pelo que já foi chamado de Estados Unidos, território agora destruído por uma pandemia causada por um fungo zumbi -a segunda parte acontece cerca de meia década depois.
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No primeiro game, o foco é a construção de uma relação de pai e filha entre os dois protagonistas -um homem que perdeu sua filha de sangue logo no início da pandemia e uma menina de 14 anos que cresceu sem nunca ter conhecido o mundo "normal".
Até então, o máximo que há é um tímido selinho entre duas adolescentes, mas que acontece somente no DLC (espécie de "faixa extra"). Em "The Last of Us Part 2", Ellie tem 19 anos e faz sexo com outras moças -não há cenas explícitas, apenas para esclarecer.
Sobre os bombardeios online de revoltados com um game com romance lésbico, Neil Druckmann, diretor e roteirista, diz: "como as pessoas vão se sentir em relação ao material é problema delas. Temos um grande orgulho da temática do jogo".
Mas e quanto a possíveis críticas vindas do outro lado do espectro ideológico, sobretudo quanto ao chamado "lugar de fala"?
"Sou um de vários [roteiristas que trabalharam no jogo]-, independentemente da minha identidade, é o trabalho do escritor 'ser' diferentes tipos de pessoas. [Ao contrário de personagens do game,] nunca assassinei ninguém, não sei como é estar grávida, mas tive experiências de vida, traumas, relacionamentos. No final das contas, são todos humanos. E mesmo que você tenha tido as mais diferentes experiências de vida, você precisa fazer uma boa pesquisa", diz Druckmann.
"Eu presumo que a maioria das pessoas que vão jogar esse jogo não serão lésbicas de 19 anos", diz a roteirista Halley Gross. "Mas espero que ['The Last of Us Part 2'] faça com que os jogadores terminem o jogo e vejam pessoas com as quais eles talvez não sentiriam nenhum tipo de conexão e digam 'é, talvez haja algo [nessa jovem lésbica de 19 anos, por exemplo] com a qual eu possa me identificar."
Da Lara Croft de 1996 à Ellie de 2020, a forma como mulheres são retratadas nos games vem mudando, e não é exagero dizer que o primeiro "Last of Us" exerceu um papel nesse processo, sobretudo no território dos AAA, os jogos blockbusters.
Nos longínquos anos 2000, o mundo conheceu a franquia de games "God of War" e seu herói, Kratos, que entre uma matança e outra se deitava com mulheres várias. Estas tinham peitos, bundas e cinturinhas de proporções pornográficas, embora nem sempre tivessem arcos narrativos. Em 2018, a franquia voltou repaginada, agora sem peitudas acariciando uma o mamilo da outra. No game mais recente, o brutamontes Kratos tem um filho, com quem tem uma relação até semelhante à de Joel e Ellie.
No 'Last of Us' de 2013, o personagem principal era um texano no estilo "cabra-macho", mas personagens femininas já iam na contramão da mulher-objeto. Na continuação de 2020, "a maioria dos personagens cresceram conhecendo somente esse mundo pós-pandêmico, em que sua vida está em constante ameaça. Se você está vivo nesse mundo, você é muito capaz, não importa seu gênero", diz Gross.
Sobre a antagonista Abby, que também é uma personagem jogável, pairou o rumor de que ela seria trans. Ela tem um corpo musculoso, braços fortes -não chega a ser um Kleber Bambam, mas também está longe de uma Gisele Bündchen. A Naughty Dog, estúdio que desenvolveu o jogo, nega que Abby seja trans.
Mas a história conta com um personagem transgênero de fato, fugido de um grupo religioso radical, após ser jurado de morte por não querer se portar e se vestir de acordo com os padrões de gênero impostos por aquela comunidade. Ele é interpretado pelo ator Ian Alexander, conhecido pela série "The OA".
Não é a primeira vez que um personagem de fora do universo cisgênero dá as caras em um jogo de videogame -e nem será a última. "Tell me Why" trará o drama de dois gêmeos univitelinos, um deles se identifica como mulher e o outro como homem. O jogo deve ser lançado para Xbox e PC ainda em 2020 pelos criadores de "Life is Strange".
E em 1988, "Super Mario Bros. 2" -provavelmente sem grandes pretensões de adentrar debates políticos- trazia no manual a descrição da personagem Birdo: "ele pensa que é menina e prefere ser chamado de 'Birdetta'". "The Last os Us Part 2", sob escrutínio desde bem antes de seu lançamento, teve parte de seu conteúdo vazado por hackers há alguns meses, o que desencadeou ainda mais reações com seu assumido teor político do jogo. Druckmann, então, recebeu críticas inflamadas, incluindo ameaças de morte e ofensas antissemitas, segundo a Wired reportou.
Disponibilizado a jornalistas e críticos antes da estreia, o jogo beira a unanimidade no agregador Metacritic, com uma nota de 95 em 100. O Guardian achou o game "inovador e poderoso", enquanto o Washington Post o chamou de "um dos melhores videogames já criados".