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Premiação

O Nobel de Literatura, maior prêmio literário do mundo, pode ser uma maldição?

Conquistar a honraria para alguns escritores significou um afastamento da escrita, enquanto outros lamentaram o desconforto da perda de sua privacidade

Sede da Academia Sueca, momentos antes do anúncio do Nobel de Literatura 2024Sede da Academia Sueca, momentos antes do anúncio do Nobel de Literatura 2024 - Foto: Jonathan Nackstrand/AFP

O maior reconhecimento literário do mundo pode se tornar uma espécie de beijo da morte? Para alguns vencedores do Nobel da Literatura, anunciado nesta quinta-feira para a escritora sul-coreana Han Kang, a honra, acompanhada de 10 milhões de coroas suecas (quase um milhão de euros), foi mais uma maldição do que um motivo de alegria.

Um dos exemplos mais trágicos é o do escritor sueco Harry Martinson, premiado em 1974, que considerou ter arruinado a sua existência como autor e como pessoa. O poeta era membro da Academia Sueca, responsável pela entrega do prêmio desde 1901, razão pela qual aquele Nobel foi considerado controverso - outros concorrentes eram Graham Greene, Saul Bellow e Vladimir Nabokov. As críticas deprimiram profundamente Martinson, que cometeu suicídio quatro anos depois.

"Ao longo dos anos, um pequeno número de vencedores do Nobel da Literatura consideraram o prêmio uma desgraça ou mesmo uma maldição", reconhece Horace Engdahl, que foi secretário permanente da Academia Sueca entre 1999 e 2009, em entrevista por email.
 

O dom de escrever
O caso de Martinson é o mais drástico, mas há outros menos graves. “Diz-se que alguns perderam o dom de escrever por se sentirem intimidados com a situação. Ficavam se perguntando: esta página é digna de um Prêmio Nobel?”, comenta Engdahl. Mas ele considera a hipótese “mais um mito do que realidade”.

Se é verdade que alguns mestres literários escreveram livros medíocres após receberem o prêmio, a maioria “tornou-se mais prolífica ou até embarcou em novos estilos”. Por exemplo, W. B. Yeats, Ivan Bunin, Thomas Mann ou Samuel Beckett.

Na virada do milênio, o termo “maldição do Nobel” tornou-se popular para se referir aos vencedores em categorias científicas que, tendo alcançado o máximo reconhecimento em suas áreas, pararam de pesquisar com rigor, se manifestaram sobre assuntos que não conheciam ou descansaram sobre os louros, já tendo demonstrado sua excelência. Por exemplo, o físico Roger Penrose, o médico Luc Montagnier e o economista Joseph Stiglitz foram acusados deste mal.

"Pode-se estabelecer uma analogia com os prêmios científicos", diz Javier Aparicio Maydeu, professor de Espanhol e Literatura Comparada na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona. "Um Nobel nunca faz mal, mas autores que o ganharam, como Camilo José Cela, Nadine Gordimer, Le Clézio ou Herta Müller, não escreveram nada de significativo depois e hoje estão literariamente mortos, por assim dizer: são muito pouco lidos".

No entanto, este infortúnio não afeta todos os vencedores igualmente.

"Escritores com uma longa obra e universo próprio, como Patrick Modiano, não foram afetados. Aqueles premiados por questões geopolíticas, e não apenas motivos estritamente artísticos ou literários, como Orhan Pamuk, podem ser prejudicados. Muitos se tornam palestrantes de luxo, perdem a intensidade criativa e se desperdiçam como autores", diz Aparicio Maydeu.

O desafio de García Marquez
Gabriel García Márquez também temia ganhar o Nobel, mas por motivos diferentes. Ele acreditava que o prêmio, que descreveu como um “louro senil” em 1980, equivalia a uma sentença de morte. O escritor colombiano observou que muitos vencedores, como Albert Camus, Juan Ramón Jiménez, Pablo Neruda, Luigi Pirandello e André Gide, morreram menos de sete anos depois de recebê-lo.

John Steinbeck, que também fazia parte desse grupo desastroso, descreveu o Prêmio Nobel de Literatura como um “beijo da morte” pouco antes de morrer, segundo a versão de Saul Bellow, que também ganhou e nem sempre gostou. Em 1982, García Márquez ganhou o prêmio e desafiou essa maldição duas vezes: só morreu em 2014 e publicou alguns de seus melhores livros, como "O amor nos tempos do cólera" (1985) e "O General em seu labirinto" (1989), depois depois de receber o Nobel.

Da mesma forma, William Faulkner e Ernest Hemingway consideraram que era um canto do cisne, um reconhecimento dos autores na reta final. Já vencedores mais recentes tiveram opiniões negativas. A poetisa polonesa Wislawa Szymborska, premiada em 1996, afirmou que destruiu sua vida privada e a transformou em uma “pessoa oficial”. Doris Lessing, que venceu em 2007, descobriu quando saiu de um táxi a caminho de casa. “Oh, Deus!” disse em tom exasperado. Elfriede Jelinek e Herta Müller, ciosas da sua privacidade e com uma reputação taciturna, também não saltaram de alegria.

O custo do 'tempo para escrever'
Uma das vencedoras mais recentes, Annie Ernaux, que ganhou em 2022, admitiu que o Prêmio Nobel não a deixou “nada feliz”, pois a parte oficial era “tediosa” e tirava “tempo para escrever”.

“O prêmio me tornou uma figura pública. Antes eu era apenas uma escritora. Agora sou um ícone, um símbolo, todas aquelas palavras pomposas que não têm sentido para mim”, disse em maio, na sua casa em Cergy, nos arredores de Paris. “Eu me senti como aquela Virgem, Notre-Dame de Boulogne, que desfilou pelas paróquias de toda a França no final da Segunda Guerra Mundial.”

Para escritores menos acostumados com a atenção do público, o prêmio pode ser um salto no vazio com o qual não sabem lidar, principalmente se forem de idade avançada. No final da década de 1990, pouco depois de se tornar o primeiro Nobel do Caribe, em 1992, Derek Walcott declarou que tinha sido “um período realmente terrível” devido ao quão “exigente” era responder aos pedidos de metade do mundo.

“O prêmio representa um importante esforço pessoal pela enorme visibilidade que acarreta”, afirma Diego Moreno, editor da Nórdica, selo independente que tem em seu catálogo três ganhadores do Prêmio Nobel: Tomas Tranströmer, Peter Handke e Jon Fosse. “Não creio que tenha tido efeitos prejudiciais para eles, mas há autores que gostam mais de exposição pública e outros que não têm tanta vontade de estar presentes na mídia."

“O prêmio é uma honra imensa, mas também uma responsabilidade e um compromisso”, afirma a diretora editorial da Penguin Random House, Pilar Reyes. “Torna-se problemático quando o vencedor é obrigado a representar um país ou uma língua, o que entra em conflito com uma das características essenciais de ser escritor: a sua liberdade absoluta e o facto de não ser reivindicado por nenhuma causa."

Para Sigrid Kraus, diretora editorial da Salamandra até 2022, tudo depende “do caráter do escritor e do momento em que o recebe”.

"Para autores retraídos, pode realmente ser uma maldição. No início eles se dedicam a essa nova etapa da vida, mas depois de um tempo ela se torna avassaladora", diz Kraus, que acredita que quem recebe o prêmio como uma consagração o aproveita melhor. "O que une a todos é o prazer de ver os seus livros republicados e, não se engane, a recompensa financeira que acompanha este prémio".

Apesar das críticas, quase ninguém abriu mão. Em 1964, Jean-Paul Sartre recusou o Nobel e também o seu prêmio financeiro por medo de que isso afetasse “o impacto dos seus escritos” e para evitar ser “institucionalizado”. Ele foi o único escritor que o rejeitou em toda a sua história.

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