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História não contada da Boate Kiss em novo livro da jornalista Daniela Arbex

Tragédia que matou 243 pessoas no Rio Grande do Sul é recontada a partir da memória de familiares e amigos das vítimas

Narrativa sufoca pelo peso emocional de um acontecimento que não se pode esquecerNarrativa sufoca pelo peso emocional de um acontecimento que não se pode esquecer - Foto: Marizilda Cruppe/Divulgação

A capa cinza, como a fumaça que consumiu a Boate Kiss na noite de 27 de janeiro de 2013. Os nomes das duzentos e quarenta e duas vítimas impressos nas laterais internas do livro. “Todo dia a mesma noite”, da jornalista Daniela Arbex, se debruça sobre “a história não contada da boate Kiss”, como indica em seu subtítulo. Publicado pela Intrínseca, o livro chega ao público repleto de dor, de perda e de memórias com uma narrativa emocionante, sincera e sem pieguices.

Recontada a partir de memórias de familiares e amigos das vítimas, bem como de funcionários de saúde que trabalharam incessantemente durante os dias, semanas e meses que se seguiram ao incêndio na boate localizada em Santa Maria, município do estado do Rio Grande do Sul, a narrativa vem acompanhada do peso de sentimentos como medo, frustração, impunidade, saudade e choque. São histórias de pais, mães, filhos, irmãs, avós e amigos que não pararam naquele fim de semana de 2013, mas que continuaram existindo e sendo afetadas pela tragédia. Histórias que, apesar da ampla cobertura midiática sobre o fato, não foram ouvidas.

“Todo dia a mesma noite” é pessoal, escrito em um estilo que preserva as gírias gaúchas e os diálogos trocados, permitindo ao leitor criar uma imagem verídica da situação e se aproximar dos personagens para além de um recurso jornalístico. A decisão de Arbex de escolher citar o nome inteiro dos personagens e suas idades ganha, também, outro significado. Não é apenas um meio de identificação das vítimas, mas passa a ser um jeito de lembrar e relembrar aquelas pessoas. Andrielle, Augusto, Flávia, Gilmara, Guto, Heitor, Lucas, Silvinho, Thanise, Vitória. Nomes que não devem passar despercebidos, devem ser lidos, cada letra e cada palavra, e sentidos. Guardados para que não sejam esquecidos — se reverberem.

A narrativa do livro sufoca, provoca angústia e claustrofobia. Acompanhamos o momento exato em que o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Santa Maria soube do incêndio. Voltamos no tempo para conhecer melhor algumas de suas vítimas, seus momentos finais, suas personalidades, seus sonhos e anseios.

Testemunhamos o começo do incêndio na boate, o sentimento de estar preso, de temer pela vida. Vivemos o futuro, o presente de impunidade, de questões não respondidas, de inquéritos, denúncias e tentativas de, sobretudo, não esquecer. Nunca esquecer. Assim como os nomes das vítimas, “Todo dia a mesma noite” não é um livro para se ler às pressas. Apesar da leitura fluir graças à escrita singular de Arbex, o peso emocional da história é algo a ser lentamente consumido. Uma ferida dolorosa, mas que precisa ser sentida continuamente.

Serviço

Livro "Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss"
Autora: Daniela Arbex
Editora: Intrínseca (248 págs.)
Preço médio : R$ 39,90 (impresso) e R$ 19,90 (e-book)

ENTREVISTA /// Daniela Arbex, autora

Daniela Arbex, autora de

Daniela Arbex, autora de "Todo dia a mesma noite" - Crédito: JR Faria Studios/Divulgação


O que foi que te fez ir atrás dessa história, perceber que ela ainda não tinha sido contada como deveria?
Eu, na verdade, não sabia de nada disso. Foi o radialista Marcos Moreno quem me procurou dizendo que ele tinha conhecido uma enfermeira de Santa Maria e que eu precisava contar essa história. E eu disse ‘mas todo mundo já contou’, mas ele disse ‘não, você não está entendendo’. A forma como ele falou mexeu comigo e me fez ter curiosidade, ficar com a pulga atrás da orelha. Resolvi procurar as famílias para saber como elas estavam, fui nas redes sociais ver o que elas estavam escrevendo. E a primeira mãe que me respondeu falou ‘ai que bom que você nos procurou, porque a gente precisa ser ouvido’.

Eu fiquei muito impressionada com essa resposta, porque foi uma história que teve visibilidade internacional. E aí eu viajei — foram cinco viagens nesses dois anos — para poder entender que tipo de história não tinha sido contada. Fui identificando essas histórias — histórias dos profissionais da área de saúde que nunca tinham falado sobre o que viveram, descobri esses pais completamente devastados como se todos os dias fossem 27 para eles. Foi aí que fui entendendo a dimensão e a grandiosidade dessa história não contada.
Foi fácil achar essas famílias, esses funcionários dispostos a falar com você sobre a tragédia?
Para conquistar a confiança delas foi demorado. Eram pessoas que já tinham sido muito exploradas e marcadas pelo tamanho dessa dor, então foi um processo de construir esse relacionamento. Os profissionais de saúde não, eles já estavam mais abertos para falar porque já conheciam meu trabalho e já tinham essa relação de confiança. E o livro foi se montando assim, através dessas confissões de histórias.
Você afirma que ele foi um dos seu maiores desafios. Por quê?
Por tudo, pela sensibilidade do tema, pela distância (para mim, que estou em Minas Gerais, Santa Maria é muito distante e não é fácil chegar lá). Ao mesmo tempo é uma história muito próxima, porque podia ser qualquer um de nós, tanto com filhos lá dentro como ser as próprias vítimas. A todo momento você se coloca no lugar daquelas pessoas.

 

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