HQ de Joe Ollmann chega ao Brasil com história de jornalista que sentou à mesa com canibais
Em "O abominável Sr. Seabrook", autor lembra história de William Seabrook, repórter americano que rodou o mundo, vivendo com beduínos e frequentando a alta-roda literária
Caçula de seis irmãos, o quadrinista Joe Ollmann nasceu há 58 anos, em Hamilton, província de Ontário, no Canadá. Apesar de a cidade ser extremamente industrial, em razão da tradição siderúrgica da região, o autor foi criado numa fazenda de árvores de Natal, comércio que rendia uma grana extra para a família.
Mesmo com uma criação idílica no campo, a arte de Ollmann é áspera, inspirada no quadrinho underground americano. E seus livros sempre impressionam. Como “O abominável Sr. Seabrook”, que acaba de sair no Brasil, pela Quadrinhos na Cia.
O personagem do título é tão fascinante que parece ser ficcional, mas não é. Trata-se de William Seabrook (1884-1945), jornalista americano que viveu com beduínos, dividiu a mesa com canibais e, depois de uma temporada no Haiti, onde descobriu o vodu, popularizou a figura dos zumbis nos EUA. Além disso, Seabrook, que chegou a publicar em veículos como Cosmopolitan, Vanity Fair e The New York Times, ainda curtia um bondage e era alcoólatra.
Leia também
• Confira os melhores filmes de Natal na Netflix para assistir em família em 2024; veja lista
• Globoplay, Disney+, Max e Apple TV+: confira as estreias de dezembro de 2024 das plataformas
• Quadrinho de X-Men de 1975 é vendido por quase R$ 1 milhão em leilão
Resultado de dez anos de pesquisa do quadrinista, sua afetuosa biografia de Seabrook revela um jornalista gonzo (estilo irreverente que mistura ficção e realidade, com forte envolvimento pessoal) inquieto e apaixonante, como todo bom personagem.
Em conversa por e-mail, o autor fala sobre como descobriu Seabrook; seu quadrinho anterior, “Pai de mentira” (Comix Zone); e seu estilo de contar histórias, com uma boa dose de melancolia.
Como foi nascer e crescer em uma fazenda de árvores de Natal? Como isso te moldou?
Tive uma infância bem idílica no campo, com uma família grande e feliz. Passei meus verões vagando pelas florestas. Eu deveria ser muito mais equilibrado do que sou. Vivi em Hamilton a maior parte da minha vida, exceto por quinze anos em Montreal. Hamilton é uma cidade suja e decadente, voltada para a fabricação de aço, mas com um núcleo forte de coração socialista e sindical. Estou muito perto dela para apreciá-la. Montreal é o amor da minha vida. Sinto falta dessa cidade todos os dias.
William Seabrook é tão fascinante que parece um personagem fictício. Como você o descobriu?
Descobri Seabrook em uma antologia sobre zumbis. A breve biografia antes de sua história, “Dead men working in the cane fields” (“Homens mortos trabalhando nos campos de cana”), era tão fascinante que eu tive que buscar mais informações. Sua amizade com tantos escritores e artistas famosos, literalmente os principais das décadas de 1920 e 1930, como Gertrude Stein, Jean Cocteau, Sinclair Lewis, Dashiell Hammett... Além disso, suas viagens ao Haiti, ao Oriente Médio e à África, sem contar seu canibalismo e prática aberta de bruxaria e bondage, eu não conseguia acreditar que nunca tinha ouvido falar dele. E parecia que mais ninguém também sabia. Todos os seus livros estavam fora de catálogo.
Como foi a pesquisa para contar sua história?
Eu era um pesquisador amador quando comecei, mas fui extremamente sortudo por haver muitos recursos disponíveis. Descobri que os documentos da segunda esposa de Seabrook, a escritora Marjorie Worthington, estavam guardados na Universidade de Oregon, então fui lá e passei uma semana revisando e obtendo suas versões — muitas vezes bem diferentes — da vida dos dois. Também descobri que o filho de Seabrook estava vivo e morando na Carolina do Norte. O pai dele atrai tipos excêntricos, então ele estava cauteloso, mas foi um colaborador incrivelmente gentil. Passei alguns dias vasculhando um baú com fotos e escritos de seu pai. Não me surpreendeu, mas a versão leve e descontraída de Seabrook sobre os acontecimentos de sua vida era menos charmosa e mais alimentada por álcool no diário de Marjorie.
Tanto “O abominável Sr. Seabrook” quanto “Pai de mentira” exploram temas como legado e identidade. São itens com um significado especial para você?
Interessante, eu não tinha pensado nisso. Estou chegando aos 60 anos e percebo que os pensamentos sobre a morte nunca estão longe da minha mente. A Universidade McMaster aqui em Hamilton recentemente pediu para assumir meu arquivo de artes originais, o que é um elogio, mas também não deixa de fazer você pensar sobre sua morte, e o que deixará para trás. Alguém vai ler ou se lembrar do seu trabalho quando você se for? Me sinto sortudo por ter meu trabalho publicado e traduzido em outros países. Lembro-me de Seth (outro quadrinista canadense) me perguntando anos atrás: “quantos livros você acha que ainda tem dentro de você?”. Nunca havia pensado nisso, mas nunca parei de pensar desde então. Quadrinhos tomam muito tempo, então você tem que considerar antes de começar um novo projeto quando se está velho.
Suas histórias misturam humor com melancolia. Isso reflete sua personalidade?
Sempre misturei tristeza e humor, parece natural, como a vida. Talvez seja como o velho ditado: eu rio para não chorar? O mundo me deixa incrivelmente triste, mas eu amo este mundo e amo a Humanidade, só que sempre sou desapontado por eles, assim como todos nós. Sou um otimista desapontado, eu acho.