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Literatura

Intimidade de Gilberto Freyre é 'autobiografia do Brasil' em novo livro de Mario Helio

Publicado pela Cepe Editora, livro do jornalista e escritor tem lançamento hoje, na Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, em Apipucos, Zona Norte do Recife, às 18h

O sociólogo e historiador Gilberto FreyreO sociólogo e historiador Gilberto Freyre - Foto: Acervo / Fundação Gilberto Freyre

Mais do que uma simples biografia, "A história íntima de Gilberto Freyre", novo livro do jornalista e escritor Mario Helio Gomes, publicado pela Cepe Editora, é um mergulho na obra e na intimidade do aclamado historiador e sociólogo pernambucano. O lançamento será hoje, na Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, em Apipucos, Zona Norte do Recife, às 18h, aberto ao público. Haverá um passeio guiado pela antiga residência do casal, que volta a receber visitantes depois de ficar fechada por dois anos.

O título provocativo do livro revela a ambiguidade característica em Gilberto, detalha o autor. "É uma história sem intimidações, ou seja, ele não receia em usar a primeira pessoa e ser mais um personagem da história, pois o seu primeiro trabalho intelectual de fôlego - a dissertação de mestrado - foi uma tentativa de compreender o Brasil do tempo dos seus avós - e Casa-Grande & Senzala teve a ambição de ser uma espécie de autobiografia do Brasil. Sim, a expressão é desse jeito mesmo: 'autobiografia' do país e dele, com sua história, inserido na História", afirma.

O conceito de "história íntima"
"História íntima é uma expressão dos escritores franceses Jules (1830-1870) e Edmond de Goncourt (1822-1896) que, por assim dizer, norteou a concepção de história do jovem Gilberto Freyre e da qual não se separou, na prática, ao longo de toda a vida. Consiste em encontrar as camadas mais ocultas e secretas da história, inclusive as mais indiscretas", explica Mario Helio, doutor em antropologia pela Universidade de Salamanca, na Espanha.

Para compreender o conceito de intimidade dentro e fora da obra de Freyre, o autor se valeu de uma série de documentos, cartas e vestígios. "A intimidade é um lugar, uma fonte, mas é também um tempo. No caso de Gilberto, o de principal está na sua própria obra, tanto a famosa trilogia quanto em outras, secundárias, como as memórias dele, vertidas sob a forma de um diário de juventude e maturidade, e também as cartas, dele e a ele enviadas. Muitos artigos e notícias de jornais e revistas. Na segunda parte, que é a transcrição da minha dissertação de mestrado, há dois depoimentos exclusivos do escritor Edson Nery da Fonseca e do pintor Cícero Dias", relata o autor.

O próprio Freyre considerava a intimidade necessária como "veículo para a verdade histórica". Quando nos referimos à ideia de intimidade, no caso da história, usamos a palavra remetendo-a à sua etimologia. Intimidade é um superlativo. Que se refere ao interior das coisas, ao mais profundo, ao cerne. Não simplesmente àquele tipo de visão humanista que vê uma pessoa 'que é núcleo do núcleo do seu núcleo'. Consiste em ir além dessas camadas, buscar outros magmas, como se existindo a alma pudesse tirar as máscaras que há por trás da grande máscara, e se esta máscara é a história e os seus documentos encontrar e desnudar o espaço de 'dentro', a 'intra' história de Unamuno, tão admirado por Freyre", detalha Mario Helio.

Retrato e intimidade de um Brasil
O livro já inicia levando o leitor ao Recife do século 19 e início do 20, com a reprodução de anúncios publicados em jornais para noticiar fuga de escravos, comércio de sítios para moradia na Estrada dos Aflitos, aluguel de amas de leite e transformações na cidade. Esse ambiente rural e de escravidão, destaca o escritor, vai influenciar a vida e a obra de Gilberto Freyre, nascido em 15 de março de 1900, na citada Estrada dos Aflitos, atual Avenida Conselheiro Rosa e Silva, no início do século 20.
 
Essa relação parcial e apaixonada pela história é narrada pelo autor a partir de uma leitura crítica da produção intelectual de Gilberto Freyre, desde a adolescência. Com 492 páginas, o livro tem origem na dissertação de mestrado em história defendida por Mario Helio na Universidade Federal de Pernambuco, em 1994. "É um desdobramento sem ser uma continuação", informa. Ele apresenta um Gilberto Freyre romancista, com Dona Sinhá e o Filho Padre e O Outro Amor de Doutor Paulo, e mostra como esses títulos não estão distantes do sociólogo, antropólogo e historiador que aborda a escravidão em Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso.
 
No romance e na não ficção, o sociólogo perseguia a verdade histórica, reforça o escritor. Ao ser questionado se esse seria o motivo pelo qual a produção de Gilberto Freyre desperta interesse ainda hoje, Mario Helio responde: "Essa é uma das razões, sim. Não esquecer, porém, de que a busca da verdade num escritor não é maior do que o interesse estético, da imaginação e da linguagem, do vigor e do frescor e certo ar de atemporalidade são feitos os grandes autores, e Freyre é um desses no mundo ibero-americano."
 
Para produzir A história íntima de Gilberto Freyre, o jornalista também se debruçou sobre o diário da juventude do sociólogo, que morreu em 1987. "Sexo é uma das palavras mais repetidas no seu diário íntimo e em Casa-Grande & Senzala. Tal importância tinha em sua mente que serve como metáfora da relação do leitor com os livros", relata no livro.

"Também chama a atenção que ele, como sujeito, seja um espelho quase exato do seu objeto: seja esse objeto chamado Recife, Pernambuco, Nordeste ou o Brasil. De que a sua personalidade como a de um Midas das ciências sociais em geral enriqueça tudo o que toque e consiga mostrar as coisas na sua intimidade ou por enfoques imprevistos. Sua capacidade de antecipação, de projetar-se além do seu próprio tempo, tendo tanto apego ao passado, que, na sua visão de tempo três vezes cheio de vida, nunca passa de todo".
 

Entrevista com o autor:
 
Pergunta - Você diz, na publicação, que poucos críticos fizeram uma avaliação equilibrada dos livros de Gilberto Freyre. A história íntima vem com esse papel, de mostrar o escritor sem endeusamento, de alertar para a necessidade de se ler a sua obra com acuro antes de amá-la ou odiá-la?

Mario Helio - Sim. Penso que a melhor postura, não apenas intelectual, mas de vida, é aquela de Spinoza: Não ridicularizar, não lamentar nem odiar ou maldizer, mas entender. Uma postura ética, de honestidade e de interesse humano legítimo, mesmo quando algo nos desagrada, seja qual for o motivo. Uma atitude franca e desassombrada é rara entre os brasileiros, muito mais presos a preconceitos, crenças e ideologias do que costuma admitir. A tal "cordialidade" referida no famoso livro de Sérgio Buarque de Holanda está presente como uma coisa negativa, a da emoção contaminar o juízo, e da abordagem parcial, muitas vezes em nome de meras opiniões, sectarismos, militâncias, ser escamoteada. Um escritor com o nível de solidez e grandeza de Gilberto Freyre merece ser lido criticamente, mas sem que isto signifique atacá-lo ou desqualificá-lo.
 
Pergunta - No livro, você fala de críticos que comentam sobre Gilberto Freyre sem ter lido suas publicações. Qual o peso dos rótulos de racista e preconceituoso, atribuídos ao sociólogo, no comportamento desses críticos?

Mario Helio - A leitura é uma arte difícil, exigente, e ironicamente, um rótulo que não cabe a Gilberto Freyre e sim a quem o ataca sem haver lido ou ter feito apenas uma leitura superficial e cheia de clichês e adjetivações pré-moldadas, é a de preconceituoso. Nenhum autor brasileiro foi mais despido de preconceitos que ele, nenhum mais corajoso em opinar -muitas vezes contra a corrente - sobre os mais diferentes temas. Quanto a raça e racismo, ele foi o primeiro e ainda o maior dos intelectuais brasileiros, a abordar as questões de raça sem ênfase nos "ismos" e nos conflitos. De tal maneira defendia o equilíbrio e o convívio que pode ser acusado muitas vezes de ser um lírico esclarecido, não um racista ou preconceituoso.
 
Pergunta - Na sociedade atual, Gilberto Freyre seria classificado como um intelectual politicamente incorreto? Para você, qual é o grande mérito de Gilberto Freyre?

Mario Helio - Sim, politicamente incorreto sob vários aspectos, e acima ainda do nosso tempo, pois não conseguimos superar questões pendentes desde há séculos, seja no que diz respeito a política, a sociedade, a sexo etc. O grande mérito dele é a agudeza, a inteligência sensível, a abertura de espírito, a fome insaciável pelo conhecimento.
 
Pergunta - Gilberto Freyre era considerado o intelectual mais vaidoso do Brasil, e como você mesmo diz no livro, ele gostava de ser elogiado e de se auto elogiar. As críticas negativas e os eventuais erros apontados em suas obras tinham um peso maior para ele ou ele não dava importância?

Mario Helio - Um dos paradoxos de Gilberto Freyre é que a vaidade nunca o converteu num presunçoso, num antipático, num dogmático, senhor de si e apenas de si. As críticas e os erros apontados nas suas obras ele recebia-os, na maioria das vezes, muito bem, e corrigia os erros que reconhecia e admitia a partir dessas críticas. Basta ler as constantes atualizações e os prefácios que aumentavam seus principais livros.

Pergunta - Em 1994, você defendeu a dissertação de mestrado Gilberto Historiador, na UFPE. Passados quase 28 anos, você lança A história íntima de Gilberto Freyre. O que você descobriu sobre o sociólogo pernambucano nesse intervalo de tempo?

Mario Helio - Dizer que foram vários Gilbertos num só seria apenas incorrer no lugar-comum que se ampara na generalização. Melhor afirmar que da dissertação ao livro, num intervalo de quase duas gerações, em que as mais novas voltam a interessar-se por sua leitura e releitura, Freyre continua muito maior do que os seus intérpretes, é já um clássico moderno, não apenas no sentido passivo, mas ativo. Não apenas manejou como poucos o ego, mas espelhou, com suas máscaras, o próprio país, e foi um dos principais inventores do que ainda hoje se entende por Brasil. Nesse intervalo de tempo, ao ler toda sua obra, a descoberta foi mais de 'outros' Gilbertos que fizeram da história e da literatura uma espécie de jogo e que se empenhou a não ser aprisionado em rótulos, mas não pode escapar deles, ao aburguesar-se e administrar a própria glória não como simples self made man, mas com uma consciência teórica e prática da importância da autopromoção de que poucos autores brasileiros podem orgulhar-se.

Serviço

O que: Lançamento do livro A história íntima de Gilberto Freyre
Quando: 21 de junho
Hora: 18h
Local: Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre (Rua Jorge Tasso Neto, s/n, Apipucos, 1º portão)
Preço do livro: R$ 90  (impresso) e R$ 36  (e-book)

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