Kleber Mendonça Filho sobre "Retratos Fantasmas": "Um filme de descobertas"; leia a entrevista
No documentário, que estreia nesta quinta-feira (24), diretor pernambucano aborda os cinemas de rua do Recife
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A semana que antecedeu a chegada oficial de "Retratos Fantasmas" ao circuito de salas de cinema do Brasil foi marcada por sessões de pré-estreia lotadas no Recife, cidade cuja região central surge como protagonista do novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho.
O documentário, que foi lançado oficialmente no Festival de Cannes, na França, e já cumpriu exibições em várias partes do mundo, entra em cartaz nesta quinta-feira (24), cercado por grandes expectativas. "Retratos Fantasmas" conta a história do Centro do Recife, no século 20, a partir das salas de cinema que movimentavam a população e ditavam comportamentos.
Selecionado para o New York Film Festival, que ocorre entre setembro e outubro, o filme já iniciou sua campanha por uma pré-indicação ao Oscar. Seu diretor conversou com a Folha de Pernambuco, antes da primeira exibição do longa na Capital pernambucana, em 14 de agosto, e falou sobre a trajetória do documentário.
Confira a entrevista com Kleber Mendonça Filho:
É curioso o filme começar no apartamento onde você morou durante vários anos, em Setúbal, mostrando a sua relação com o local. Como essa primeira parte se conecta à ideia central do documentário, que seria falar sobre os antigos cinemas de rua do Recife?
Eu e Matheus [Farias, montador do longa] começamos a editar o filme muito baseados no Centro da cidade e nos cinemas. Eu logo fiquei bem desanimado, porque ficava parecendo um catálogo de cinemas, uma coisa meio documentário da National Geographic. Eu dei uma desanimada grande, entrei meio que em crise - o que acontece em todos os filmes, ainda mais um de montagem de arquivo. Nessa época, eu e Emilie [Lesclaux, produtora do filme e esposa de Kleber] entendemos que deveríamos nos mudar. Eu iria sair do apartamento onde havia passado boa parte da vida, porque a gente teve filhos e o lugar ficou pequeno. Coisas normais, assim, da vida. Esse período de desapego levou um tempo. Fui desmamando aos poucos do lugar. Comecei a ficar muito sensível à entrega do imóvel e, claro, lembrei que, durante muitos anos, filmei muita coisa nele. Foram não só imagens domésticas, mas filmes mesmo, experiências, vídeos com os amigos, os primeiros filmes primitivos feitos em casa. "O Som Redor" (2012) foi feito lá, já com equipamento de cinema mesmo. Esse catálogo de imagens de um mesmo lugar, que é um lugar comum, uma casa de família, eu achei que era uma coisa muito bonita. Isso me trouxe de volta para o filme. E é muito engraçado, porque abandonei completamente a parte do Centro e trabalhei meses só na ideia do apartamento. Duas coisas poderiam acontecer - e eu estava aberto para ambas. Uma era aquele filme, de repente, virar um filme só sobre esse apartamento do cinema, mas da vida também, ou - o que era a minha teoria - ele seria a primeira parte deste filme que eu já estava fazendo. Terminou que eu fui gostando cada vez mais do que viria, depois, a ser uma primeira parte.
Incrivelmente, eu achei nas [imagens] brutas do "O Som ao Redor" uma cena da Maeve [Jinkings, atriz] com um regador. Ela passa pela câmera e vai colocar água nas plantas. Em 2017, eu tinha filmado com Pedro [Sotero, diretor de fotografia] lá na Guararapes, no alto de um prédio. O senhor que deixou a gente filmar lá abriu a porta e a gente se instalou. Eu queria fazer um plano que pegasse toda a avenida e fosse para o São Luiz. E aí, de repente, ele estava lá botando água nas plantas e a gente faz o plano. Na montagem de "Retratos Fantasmas", eu disse: "Matheus, tem Maeve botando água nas plantas e tem um senhor botando água nas plantas". Eu acho que essa é a nossa passagem para o Centro da cidade. Eu gosto muito daquela montagem, do corte.
Parece que é o mesmo apartamento
Parece, e é isso o que eu quero te dizer, porque a sua casa é um lugar que você conhece como a palma da sua mão. Se você tapar os olhos, você sabe onde é o banheiro, o terraço, a televisão. E o Centro da cidade, para mim, é assim também. Eu o conheço muito bem, como falo no filme. Então, acho que esse paralelo, por mais que pareça um pouco estranho, é totalmente lógico na minha perspectiva. Eu acho que as pessoas sacam e o filme flui.
É o seu filme mais pessoal?
Não, eu não acho. Eu acho que todos eles são muito pessoais. Esse obedece àquela categorização de pessoal, porque eu falo em primeira pessoa, mas "O Som ao Redor", por exemplo, é um filme muito pessoal, dedicado à minha mãe, inclusive. Eu jogo um "para Joselice" no início do filme. "Aquarius" (2016) é muito pessoal. Ele é a presença também da minha mãe, a minha relação com Boa Viagem, com a praia, principalmente. É algo que, aliás, eu não tenho mais. Tive muito quando era adolescente. Aquela coisa do esgoto, que nunca vai sair de moda em Boa Viagem, continua lá. Naquela época, já pulava para não botar o pé no esgoto. São coisas muito pessoais. O "Vinil Verde" (2004) é muito pessoal. "Recife Frio" é extremamente pessoal. É Recife numa daquelas noites de inverno. Mas é engraçado que oito em cada dez comentários dizem que é o meu filme mais pessoal. Eu não acho, mas está tudo certo. Não vou ficar corrigindo ninguém.
Em algum momento, você se preocupou com a forma como o público de fora do Recife conseguiria se conectar com o filme?
Nunca. Eu fico pensando em todos os filmes que me deram para ver, ao longo da vida, que falavam de lugares onde eu nunca havia ido e de pessoas que eu nunca havia ouvido falar. Então, eu acho que também tenho o direito de fazer isso. Eu dei uma entrevista recentemente a uma revista canadense, onde o crítico de cinema, um inglês radicado no Canadá, disse: "Você identifica com voz Tony Curtis e Janet Leigh, e também identifica com voz pessoas que eu nunca ouvi falar". E, aí, eu respondi: "Mas, agora, você ouviu falar delas" (risos). Eu gosto de dar o mesmo tratamento para Janet Leigh e Gustavo, funcionário do São Luiz. É a mesma coisa. Assim como é com Antônio Cadengue, Jomard Muniz de Brito e Cláudio Assis. Seu Alexandre [ex-projecionista do Art Palácio], para mim, é um grande personagem, que agora as pessoas vão saber um pouco como era incrível. Eu acho que compartilhar pessoas é parte de um filme também, seja de ficção ou documentário. Você não precisa explicar formalmente. Imagina, por exemplo, você ver Ariano Suassuna comprando ingresso no São Luiz [uma cena que está no documentário]. Eu acho aquela imagem tão boa. É um homem comprando ingresso em uma bilheteria. Para quem não sabe quem é Ariano, é só um homem comprando ingresso em uma bilheteria. Se você sabe quem ele é, isso tem outro impacto. Então, os filmes funcionam em camadas bem diferentes. Você pode ver "Retratos Fantasmas" e achar que há cenas bem assustadoras, que é muito bonito ou dizer que é muito chato. Cada um leva alguma coisa do filme e eu estou completamente à vontade com isso.
Quanto tempo levou e quais foram os desafios no processo de pesquisa para o longa?
Levou alguns anos. O material de pesquisa mais formal foi feito por Karina Nobre e Cleodon Pedro Coelho. Eles se enfurnaram no arquivo público, na Cinemateca Brasileira, no CEDOC da Globo, na TV Jornal e na Filmoteca Alberto Cavalcanti. E não me creditei, mas muito da pesquisa veio do meu próprio acervo, de coisas que eu já suspeitava que existiam, fui atrás e trouxe para o filme. Então, é um filme de coisas achadas e isso é muito bonito. Algumas coisas que eu estava procurando eu não achei, mas encontrei outras e o filme guinou para outro lugar. Entrei em contato, por exemplo, com Abílio Guerra, que é um pesquisador de São Paulo, e eu sabia que ele estudava Rino Levi, o arquiteto. Perguntei se ele teria alguma foto que ninguém conhece do Art Palácio e ele me mandou um material riquíssimo sobre o Art Palácio e o Trianon. Foi assim que eu descobri que esses dois cinemas foram um projeto da UFA, que era apenas o braço de propaganda de Hitler. Isso, pra mim, foi uma grande descoberta e veio através da minha pesquisa, sem eu saber que iria acertar nisso. Então, o filme foi se construindo a partir de descobertas. É um filme que precisou de tempo para existir. Você não pode dizer: "Hoje eu vou começar a fazer 'Retratos Fantasmas' e, daqui para o final de novembro, deve estar pronto". Não, se for um bom filme, ele não estará pronto. Você vai ter que dar um bom tempo de amadurecimento ao projeto, deixar que os arquivos quase que cresçam na sua cabeça, feito bactérias, feito massa de pão. É muito curioso o efeito que o tempo tem nesses arquivos.
Por falar em dar tempo ao filme, você vinha trabalhando em "Retratos Fantasmas" desde "Aquarius". Por que só agora ele chega ao público?
Eu gosto de dar tempo aos filmes. "Bacurau" (2019) foi montado em dez meses. É muito tempo. Tem filme que fica pronto em três, dois meses, mas esse foi o tempo que precisei para o filme ficar pronto. "Aquários" foi finalizado em seis meses, "O Som ao Redor" em um ano e três meses. Um filme de arquivo leva tempo. Você entra em contato com o CEDOC da Globo, por exemplo, e eles não vão te mandar amanhã o que você está pedindo. A Karina achou uma anotação na Cinemateca Brasileira, de um rolo registrado como "0587 - Tony Kurts Recife". Não havia nada sobre ele, só o rolo negativo. A gente teve que pegar isso, mandar para uma finalizadora e escanear em 4K, gastando um dinheiro grande, para ver o que tinha naquele negócio. Quando a gente recebeu foi: "Uau, Tony Curtis e Janet Leigh na Ponte Duarte Coelho". Só que junto veio uma matéria dos anos 1950 sobre uma loja de brinquedos em São Paulo e a tomada de posse de um tenente, tudo no mesmo rolo. Então, é muito doido o acesso que você tem a fragmentos de história. Eu não sei o que fazer com a loja de brinquedos em São Paulo, mas com Tony Curtis e Janet Leigh na Ponte Duarte Coelho, sim. É uma imagem muito poderosa no filme, porque ela condensa exatamente esse encontro da realidade com o cinema. Acho que o filme é muito isso. A sequência final é um encontro de realidade com o cinema. A realidade total de pegar um Uber e trocar uma ideia com o motorista, só que, aí, alguma coisa acontece.
Qual é a sua opinião sobre o estado de conservação atual dos poucos cinemas de rua que sobreviveram no Recife?
Na verdade, eu sou bem otimista. O Centro do Recife encontra-se em um estado de desrespeito, em geral. Por outro lado, a cidade está em uma situação privilegiada, e estou falando em relação ao mundo, não só do Brasil. O Recife tem o Cinema São Luiz e, a 250 metros, o Teatro do Parque. São Paulo não tem um São Luiz, só salas modernas e pequenas. Isso fala um pouco sobre Recife ter um lado tacanha, que é horrível, mas também ter um outro lado de briga, de um respeito pela cultura que explica o Parque até hoje estar não só aberto, mas recém restaurado impecavelmente, equipado para teatro, cinema, música e dança. O São Luiz está passando por um processo de reforma. Eu prefiro ser otimista e achar que o Governo de Pernambuco está levando isso a sério, porque cada dia que o São Luiz fica fechado é uma perda para a cidade, a população, a cidadania e a cultura. Eles já devem ter entendido isso com a quantidade de energia, de amor mesmo, que a movimentação em torno da volta do São Luiz tem mostrado. Eu prefiro dar crédito, ficar esperando e apressar. O São Luiz precisa voltar o mais rápido possível e isso está nas mãos do Governo. Então, que façam o trabalho corretamente.