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ENTREVISTA

'Nos odiamos uns aos outros, mas somos todos iguais', diz diretor do anime 'Belle'

Cotado para o Oscar, o anime do Studio Chizu é assinado pelo premiado diretor japonês Mamoru Hosoda

Filme de animação para todas as idades, "Belle" estreia nos cinemasFilme de animação para todas as idades, "Belle" estreia nos cinemas - Foto: Divulgação

Filme de animação para todas as idades, “Belle” estreia nesta quinta-feira (27) nos cinemas do país com credenciais como ter sido aplaudido por 14 minutos no Festival de Cannes e ter alcançado 95% de aprovação no site agregador de críticas Rotten Tomatoes.

Cotado para o Oscar, o anime do Studio Chizu assinado pelo premiado diretor japonês Mamoru Hosoda — que já foi indicado à estatueta de melhor filme de animação com “Mirai no Mirai” (2018) — reúne, com um visual impressionante, elementos que vão de questões atuais como hostilidade nas redes sociais e uma espécie de metaverso, a temas como luto e problemas familiares.



Em entrevista por e-mail, Mamoru Hosoda conta que já foi vítima de calúnia, fala da relação da internet com a tendência que vê de o mundo vir a se tornar um lugar mais injusto e detalha influências em seu trabalho como “A Bela e a Fera”.

No filme, o vilão reúne o punitivismo do justiceiro de internet com a hipocrisia de quem se apresenta como herói mas está interessado em levar vantagem. Como esse tema chamou sua atenção?

Problemas como a cultura do cancelamento estão acontecendo como nunca antes. Acho que “justiça” é uma palavra realmente perigosa nas redes sociais. As pessoas acreditam em sua própria justiça e assim apontam para as outras. E é assustador quando há manipulação disso. Sinto que o mundo tende a se tornar um lugar injusto em consequência dos que se deixam levar facilmente. E o que é visto na internet se reflete na realidade: percebo que muitas pessoas pensam como (o personagem) Justin no mundo real.

O ambiente U da trama seria uma mistura de rede social com metaverso? Como vê este que se tornou um assunto tão em evidência?

Trabalho no tema há 20 anos, como em “Digimon adventure”, “Summer wars” etc., e sinto que a realidade alcançou a ficção. Antes, a internet era apenas uma ferramenta, e a TV era ação de mão única, mas tudo se tornou interativo. A nossa existência se expandiu, e devemos enxergar que na verdade estamos vivendo em dois mundos. Antes que percebamos, cada um de nós terá uma outra parte de si mesmo. É como se o rosto que você mostra fosse diferente dependendo da pessoa com quem está falando. E sinto que, se existem vários mundos, isso permite que a pessoa viva livremente e que não seja a mesma. Este é um filme que declara que existem dois mundos.

Que caminhos essa nova realidade deve tomar?

Há pessoas que dizem que a mídia social é um mal e que se deve fazer restrições por causa de seu forte poder de calúnia e ataque. Mas sempre acho que a internet não é ruim em si — são as pessoas que a usam. O mundo onde se vê a inveja é a internet, mas o difícil é regular a mente humana. A calúnia sempre existiu, eu mesmo já vivi isso. Ainda que a internet seja regulamentada, a inveja e outros sentimentos negativos são da natureza humana e não vão desaparecer.

Há também no filme a questão tradicional da garota simples que tem mais em comum com a menina popular do que imagina. A intenção é mostrar que os sentimentos são muito mais universais do que as pessoas enxergam?

Sim. Acho que é uma cena importante do filme quando uma olha para a outra e diz: “Ela é igual a mim.” Acho importante entender que, à primeira vista, nos odiamos uns aos outros, todo mundo odeia várias outras pessoas e acredita numa hierarquia, mas, na realidade, é importante que todos conversem profundamente e assim se entendam e vejam que somos todos iguais. Se nos entendermos, poderemos ficar livres da ansiedade e da solidão. Os jovens de hoje, com a internet, passam por isso: em algum momento, você é livre, mas há um lado de cada um que cai na solidão e na dúvida. Espero que eles não se percam nessas coisas e saiam pelo mundo com sua própria energia de viver. O bom da mídia social é que ela mudou o senso de valor, ela permite que as pessoas encontrem possibilidades mesmo que não sintam ter um talento especial, assim, espero que a geração jovem floresça sem sentir medo.

Há uma relação de muito medo entre pai e filhos na trama, mas ele não é um vilão, é?

Ele não é um vilão. A internet nos permitiu desvendar tabus como a violência doméstica. Vi notícias de aumento do problema na pandemia e acho importante pensar em como podemos mudar a sociedade para lidar com essa realidade. Sei que muitos pensam que animação é para crianças, então chama a atenção retratar violência doméstica num filme de animação, mas, se você não abordar, parece que não existe. Isso pode ter sido considerado tabu por ser visto como impossível de resolver, mas eu queria mostrar o assunto com a esperança de que os pais possam mudar a maneira como pensam sobre seus filhos e assim transformar essa realidade. Os atos do pai da trama vêm do amor excessivo. Isso também está ligado à relação entre a protagonista e seu pai. São dois exemplos de como retrato a falta de comunicação entre membros de uma família. Acho que é um problema comum que as pessoas consigam se comunicar na internet, mas não na vida real.

O luto também está presente, incluindo comentários, no mundo real, condenando a mãe que a protagonista Suzu perdeu. Qual a intenção ao abordar o tema e a atitude de Suzu com o pai?

Pode acontecer em outros países também, mas histórias de pessoas se sacrificando tentando salvar alguém mais fraco são comuns no Japão nos últimos mil anos, como está nos livros de História. Suzu começa a entender a ação de sua mãe depois que ela tenta ajudar os meninos que nunca conheceu na vida real, e a relação entre Suzu e o pai se revitaliza. Eu queria retratar a relação que filhos têm com os pais: quando você é criança, não entende os sentimentos deles. Mas, à medida que envelhece, começa a entender seus pais, acho que é um tema universal. E espero que o público no Brasil possa entender.

Como “A Bela e a Fera” entrou no seu filme?

Eu gosto de “A Bela e a Fera”, tanto de Jean Cocteau quanto da Disney. Gosto principalmente da Fera. Sempre achei a dualidade do exterior violento e do coração gentil interessante, e, na atualidade, pensei que poderia haver uma dualidade semelhante entre o mundo real e o mundo da internet. Daí vem a presença do tema no filme. Acho que isso pode ser visto também em trabalhos anteriores meus como “Crianças lobo” (2012) e “O rapaz e o monstro” (2015). Estou interessado no que faz personagens de extremos opostos chegarem a entender uns aos outros. E acho que um dos temas de “A Bela e a Fera” é a devoção. E me perguntava como podemos retratar a devoção na contemporaneidade.

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