O renascimento de Joana, a mulher que compôs 'Vassourinhas'
Projeto de documentário resgata a história de Joana Batista Ramos, a mulher que em 1909 compôs, junto com Mathias da Rocha, a 'Marcha Número Um do Vassourinhas' - frevo que é considerado um hino pernambucano
"É minha tataravó". O brilho de orgulho no olhar do pequeno David Lucas, de sete anos, é o reflexo do que sentem os descendentes de Joana Batista Ramos, a compositora da "Marcha Número Um do Vassourinhas" - o mais popular dos nossos frevos e considerado um verdadeiro hino pernambucano.
Até pouco tempo, nem David, nem Alexia, nem Amara, nem Meriodac, nem Célia, nem Maria das Graças, nem Carlos, nem Maria Betânia, nem Edilson, nenhum dos vários netos, bisnetos e tataranetos de Joana tinham dimensão da importância dela. Foi só depois do último Carnaval que a equipe de documentaristas que tenta reconstruir a vida da compositora conseguiu consolidar informações que permitiram chegar até eles.
Na última quinta-feira (21), numa cerimônia no Centro de Convenções, em Olinda, Sônia Maria Campos Michiles, de 70 anos, a única da família que chegou a conviver diretamente com Joana, subiu ao palco para receber uma homenagem, durante um evento promovido pela Secretaria Estadual da Mulher.
A reviravolta surpreendente trouxe de volta a história de uma mulher negra e pobre, provavelmente filha de escravos, que compôs junto com Mathias da Rocha esse verdadeiro símbolo de nosso Carnaval. O "pã-nã-nã-nãnã-nãnã" característico ecoa há quase 110 anos e foi criado durante as celebrações que outros foliões negros e pobres como ela promoviam nos mocambos do Porto da Madeira, na zona norte do Recife, perto de onde hoje são o Estádio do Arruda e o Fundão. Seis de janeiro de 1909 é a data em que o frevo teria sido composto.
Há registros mais precisos sobre a história do violonista Mathias da Rocha, que foi um dos fundadores do Clube Vassourinhas (fundado em 1889, um ano após a Abolição da escravidão) e autor de outras músicas. Já sobre Joana, até agora, pouco ou nada se sabia. Ela vendeu seus direitos musicais ao Clube Vassourinhas em 1910, por três mil réis. Teve dois filhos, Júlio e Albertina, com Amaro Vieira Ramos, e morreu em 1952, aos 74 anos.

Única imagem que resta da compositora faz parte do acervo da Fundação Joaquim Nabuco - Crédito: Divulgação
Entre os descendentes de Joana, tem dona de casa, pedreiro, catador de reciclável, professora de história, advogada... Sua trajetória se mescla à dos negros brasileiros e ao surgimento do frevo em Pernambuco. Como um símbolo das milhares de mulheres invisibilizadas dentro de nossa sociedade, deixou poucos registros além de um retrato (possivelmente, pintado) que hoje pertence ao acervo da Fundação Joaquim Nabuco. Não se sabe sua data de nascimento, nem se tem seu registro de óbito.
A maioria da prole extendida de Joana nunca tinha ouvido falar nela. Meriodac Barros Ramos, 73, seu único neto vivo, não tem lembranças da avó, que partiu quando ele tinha sete anos: Júlio, seu pai, era caminhoneiro, teve filhos com várias mulheres e só passou a ter contato com Meriodac quando este era adolescente.

Meriodac Barros Ramos é o único neto vivo de Joana Batista - Crédito: Léo Malafaia/Folha de Pernambuco
Já a bisneta Sônia (filha de Cleonice, uma das muitas meio-irmãs de Meriodac), apesar de mais nova, tem lembranças concretas. "Quando penso nela, é sentadinha num banco, fumando cachimbo, bordando, cantando", descreve. "Ela não fazia fantasias?", indaga seu irmão Edilson, 66. "Era! Ela mandava a gente procurar papel velho de cigarro, para usar o material dourado e prateado para fazer leques, flores, os detalhes das roupas. Naquele tempo não tinha tanto material assim disponível. Mas ficava lindo", atesta Sônia, que a infância inteira ouviu a mãe se gabar que a bisavó era a compositora de Vassourinhas e pegou gosto pelo Carnaval com o avô. Júlio transportava açúcar no Porto do Recife e, durante a folia, levava filhos e netos na carroceria do caminhão, para assistirem ao corso.

Sônia, de 70 anos, é a única descendente que tem memórias presenciais de Joana - Crédito: Léo Malafaia/Folha de Pernambuco
Rede solidária colaborativa
A investigação que permitiu reunir os descendentes de Joana Batista e apreender um pouco de sua história vem sendo realizada pela produtora cultural Tactiana Braga e pelos jornalistas Maíra Brandão e Camerino Neto, que estão produzindo o documentário "Joana: se essa Marcha fosse minha", ainda sem data para lançamento. Havia uma única pista concreta da existência da compositora: o recibo de venda da música, registrado em cartório e localizado pelo pesquisador Evandro Rabello.
A história obscura de Joana sensibilizou uma multidão de pesquisadores de várias áreas, que vêm dando suporte ao trio de forma multidisciplinar. São especialistas em antropologia, em música, em genealogia e muitos outros setores, numa verdadeira rede solidária colaborativa. "Estamos tocando esse projeto de forma insana, ainda sem patrocínio efetivo, sem verba depositada em conta, mas tomados pela felicidade e pela graça de Joana", resume Tactiana.
Camerino conta que, diante dos testemunhos escassos e dos poucos relatos obtidos nos jornais antigos, a equipe se viu forçada a tatear no escuro. "Sabíamos que ela tinha dois filhos, e fizemos uma campanha na internet para procurar os netos e bisnetos", relata ele. Acabaram localizando descendentes de Júlio (seu filho Meriodac e seus netos Sônia, Edilson, Célia e Carlos) e de Albertina (sua filha Carmen), além de muitos outros bisnetos, tataranetos e pentanetos.

Camerino Neto (em pé), Maíra Brandão (esquerda) e Tactiana Braga estão à frente do documentário - Crédito: Bernardo Dantas/Divulgação
"A tecnologia trouxe minha bisavó de volta. Ela renasceu", diz Sônia, emocionada. A pesquisa trouxe também o contato entre familiares, que em muitos casos estava perdido há décadas - afinal, a prole de Joana está espalhada por toda a região metropolitana, de Socorro, em Jaboatão nos Guararapes, a Caetés, em Abreu e Lima.
Ainda faltam muitas peças no quebra-cabeças que conta a trajetória de Joana. O filme será composto por entrevistas com pesquisadores de diversos segmentos, maestros, compositores e outros profissionais ligados ao frevo. Bela e humilde, a história da compositora é também o fio condutor que permite perceber o fim da escravidão em Pernambuco, o surgimento do frevo, o preconceito enfrentado pelos negros, a ascensão da república e a criação de uma classe trabalhadora.
"Que ela existiu, não há mais dúvida. Agora, a gente vai coletar alguns depoimentos extras e buscar alguns documentos cartoriais, para complementar algumas informações que já temos", explica Maíra Brandão. "Está sendo uma experiência incrível, muito compensadora, buscar esses resquícios de memória. Quase um processo arqueológico. Cada vestígio que encontramos ajuda a compor essa colcha de retalhos e é uma vitória, uma alegria", finaliza.
Quem tiver interesse em acompanhar e contribuir com as pesquisas, pode entrar em contato pelo e-mail joanaeamarcha@gmail.com ou pelas redes sociais, através do Facebook e do Instagram @joanaeamarcha.