Com livro de memórias, Paulo Betti relembra família analfabeta e explica por quê não promove bets
Ator se redescobriu "bonito" ao se ver em fotos e novelas antigas: "Ainda bem que não percebi antes, porque senão não teria me esforçado tanto"
Paulo Betti tem duas dicas aos mais jovens: pegar sempre as escadas e anotar tudo o que pensa.
Estudioso do teatro — formou-se pela Escola de Arte Dramática da USP e trabalhou com Celso Nunes no departamento teatral da Unicamp —, o ator e diretor vê os degraus como um elemento cênico existencial.
Também é um anotador compulsivo, que guarda páginas e páginas de observações escritas como um fluxo de consciência ao longo dos anos.
Leia também
• Por causa de irmã com deficiência, Guy Pearce achava fama vazia e nunca quis ser estrela
• Em celebração aos 40 anos do "Sem Censura", Cissa Guimarães comanda a produção direto de Salvador
• Confira os resumos das novelas da semana (20/01 até 25/01)
Esse material serviu como base para “Autobiografia autorizada”, monólogo teatral escrito em 2015, quando comemorou 40 anos de profissão, e que ele vem revisitando nos palcos desde então.
O texto é um work in progress, que ganhando novas camadas ao longo dos anos. Ele surge agora em sua mais nova versão, dessa vez adaptada para livro.
Recém-lançada pela Geração Editorial, a obra é um mergulho no passado de Betti, de sua infância em um bairro pobre de Sorocaba até seus primeiros passos no palco.
Ficaram de fora os sucessos no teatro (vencedor de dois prêmios Molière), na TV (marcou época com o detetive Olavo de “A próxima vítima” e o blogueiro Téo Pereira de “Império”) e no cinema (interpretou personagens históricos como Mauá e Lamarca), mas essa trajetória pode pintar em um próximo volume.
Apesar do título, o livro não traz apenas uma história pessoal.
Último dos 15 filhos (sobreviveram sete) de uma analfabeta e benzedeira, Betti apresenta uma galeria de personagens formidáveis em um ambiente felliniano.
O pai esquizofrênico que engravidava a mãe no intervalo das internações, a avó que não acreditava na ida do homem à lua (“é propriedade de São Jorge”), o irmão machão que aceitou o filho gay.
"Acho que a minha família entrou na peça como se me desse um drible" diz Betti.
"Sabe quando alguém entra em um quadro e pede passagem? Como diz aquele famoso filósofo do futebol, Neném Prancha, “quem pede recebe, quem se desloca tem preferência”"
As memórias de Betti são as memórias de um Brasil profundo que ficou esquecido após o fim do regionalismo na literatura, e a transição para os cenários urbanos.
Sua história é íntima e, ao mesmo tempo, coletiva. Ao ler o texto, a atriz Cláudia Abreu, sua amiga, achou-o “parecido com Annie Ernaux”, a francesa vencedora do Nobel de Literatura, e que também escreve sobre suas origens operárias.
Outros compararam com os livros de Édouard Louis, também conhecido por retratar suas origens familiares e narrar uma história de ascensão social.
Betti nasceu em Rafard, terra onde morou Tarsila do Amaral. A casa da pintora modernista ainda está preservada.
O ator, por sua vez, acompanhou o lento desmoronar da casa em que passou seus primeiros anos, através de fotos que lhe enviavam na internet.
A antiga senzala abrigou os primeiros imigrantes italianos após o fim da escravidão.
Durante a pandemia, quando encenou a peça em uma live dentro de sua casa de dois andares no Itanhangá, Zona Oeste do Rio, Betti usou as escadas como cenário.
Subindo e descendo os degraus, era como se transitasse entre a casa de suas origens e sua casa do presente, observou na época a atriz Eliane Giardini, primeira esposa do ator, e sua colega de Escola de Arte Dramática.
Imerso em lembranças, o ator continua voltando à sua infância e adolescência em busca de respostas para o presente.
"Por ser de uma família de analfabetos, escrever para mim sempre foi uma espécie de missão" diz ele.
"Palavra pesadíssima essa “analfabeto”. É um universo muito doido. Eu era o leitor da minha mãe, como se a guiasse por esse mundo"
Betti acaba de interpretar o Cascão idoso “Turma da Mônica — Origens”, série exibida pelo GloboPlay.
Também pode ser revisto como o Timóteo de “ Tieta”, nova novela de Vale a Pena Ver de Novo, na Globo. Ao se ver mais jovem nas novelas antigas, passou a se ver pela primeira vez como “bonito”.
"Minhas filhas viram fotos minhas quando era jovem e falaram: “pô, pai, tá bonito, hein, não sei que lá”"conta.
"Eu não tinha mesmo noção, me achava muito magro. Lembro de ver, dentro da janela de um ônibus, minha foto em um outdoor gigante da Vogue (ele era capa da revista). Se eu soubesse que fosse bonito, certamente não estaria em ônibus, estaria pelo menos em um táxi (risos). Mas ainda bem que não percebi antes, porque senão não teria me esforçado tanto pelas coisas"
Galã ou não, há um tipo de assédio ao qual Paulo Betti fez de tudo para escapar.
Por conta do sobrenome sugestivo, não faltaram propostas de sites de apostas para que protagonizasse campanha das chamadas “bets”.
O ator declinou ("Achei melhor não fazer", explica), preferindo os trocadilhos com seu nome criados pela sua esposa, a atriz, roteirista e “cuscuz influencer” Dadá Coelho.
A apresentadora da série documental “Da manga rosa”, do GNT, tem uma coleção deles: Betti Davis, Betti Carvalho, Betti Boop, Betti A Feia, Lady MacBetti — e por aí vai.
"Ele é minha casa de apostas favoritas" brinca Dadá.
A volta de “Tieta” também trouxe à tona as memórias das eleições presidenciais de 1989. Betti se dedicou intensamente à campanha para eleger Lula, que acabou perdendo para Fernando Collor.
Durante um voo na campanha, chegou a repassar ao candidato uma ideia que tinha ouvido de um amigo.
O plano era que Lula encerrasse o seu último debate contra Collor mostrando para a câmera uma carteira de trabalho. Mas o atual presidente da república mudou de ideia no final, decepcionando Betti.
"Fiquei muito marcado por me engajar tanto na campanha" lembra.
"Acredito que perdi alguns trabalhos por isso. Antes disso, eu já tinha mergulhado na campanha (para prefeitura de São Paulo em 1988) da Luíza Erundina. Fiz 15 aparições na TV, falando sempre o que ela não poderia falar, ou seja, fazendo o trabalho sujo"
Betti acompanha com satisfação o sucesso internacional de “ Ainda estou aqui”.
Não só porque torce pelo cinema brasileiro, mas também por sua amizade com Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que inspirou o longa de Walter Salles.
Betti fez a primeira adaptação teatral de “Feliz ano velho”, romance autobiográfico de Paiva.
O escritor relata o acidente que o deixou tetraplégico, após mergulhar em um lago às margens da Rodovia dos Bandeirantes, em 1979. Quando a peça estreou, o livro já era um best-seller, chegando à sétima edição.
"Eu estava dando aula na Unicamp, onde Marcelo estudava, quando o acidente aconteceu" diz Betti.
"Todo o campus sofreu aquele baque junto com ele. Fazendo peça, convivi com Marcelo, ficamos brothers mesmo, eu soltava a carreira de rodas dele na ladeira. Me sentia parte da família dele, e convivi com Eunice (Paiva, mãe de Marcelo) também"
Betti conta que se emocionou assistindo “Ainda estou aqui”:
"É tão bom quando aparece um filme que emociona" diz. "Todo mundo vai assistir e chora. E que elenco!"