Paulo Ricardo reflete sobre sucesso estrondoso do RPM e briga com parceiros da banda na justiça
Cantor e compositor de 62 anos é atração principal do SP Gastronomia, no Parque Villa-Lobos, em São Paulo, nesta sexta-feira (8)
Se Paulo Ricardo soubesse o que fazer, o que ele faria, aonde iria chegar? Se soubesse quem ele é, até onde vai a sua fé, pagaria pra ver? Londres, 1983. Uma banda põe um anúncio nos classificados: “Precisa-se de vocalista.”
Quem aparece é Paulo Ricardo, então correspondente de música da revista Som Três na capital britânica, aos 20 anos. Ele é aprovado para a vaga, mas titubeia.
"Eu estava dentro, mas decidi voltar para o Brasil" diz ao Globo o cantor de 62 anos, em entrevista por telefone dada enquanto está num alfaiate experimentando figurinos para shows como o de hoje, em que é atração musical principal do SP Gastronomia, evento realizado pelo Globo no Parque Villa-Lobos, no Alto de Pinheiros, Zona Leste de São Paulo.
"Morro de curiosidade de saber o que aconteceu com aqueles caras e o que eu teria me tornado se tivesse ficado"
Paulo Ricardo queria voltar para se dedicar a um projeto cada vez mais amadurecido entre ele e um tecladista, colega de faculdade, com quem já havia montado uma banda de rock progressivo. Eles vinham trocando cartas, e Paulo lhe informava das tendências da efervescente cena de rock da capital britânica.
Já de volta ao Brasil, Paulo Ricardo “se enfurnou” na casa de Luiz Schiavon (1958-2023), em Pinheiros, São Paulo, e ali os dois materializaram tudo o que já vinham refletindo nas correspondências.
Naquela imersão na casa do “Schia” nasceu o RPM (sigla para “revoluções por minuto”) — um dos maiores fenômenos da história da música brasileira.
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Confira, a seguir, outros trechos da entrevista.
O que a experiência em Londres somou ao RPM e como foi esse início da banda?
A gente ficava batendo bola nas cartas e fomos lapidando o que viria a ser o RPM. Aprendi muito em Londres e precisava aplicar. O synth tava muito presente no rock inglês. O Schiavon também já era muito antenado, tinha investido em sintetizadores. Começamos a compor pensando em ser um duo, tipo Eurythmics. Mas era difícil. O rock nacional tinha muita banda boa, então imagine, depois de Titãs, Ultraje etc., entra só eu e Schiavon, sozinhos no palco. Fomos atrás de um baterista. E começamos bem, tivemos uma projeção muito boa como banda independente. No final de 1984, fomos contratados pela gravadora para fazer três álbuns.
Era um contrato muito bom para uma banda iniciante. Como foi a aproximação com a gravadora?
Eu sou muito amigo do Marcelo Rubens Paiva. Quando o Marcelo estourou com “Feliz ano velho”, no livro ele cita uma banda que teve. O Tomás Muñoz, que na época era presidente da CBS, um cara muito culto, leu o livro e fez um convite pro Marcelo gravar essa banda que ele menciona. Mas a banda não existia mais. Marcelo foi na reunião com o Muñoz e eu fui com ele. Marcelo falou: “Olha, Tomás, obrigado pelo convite, mas não estou ligado em música. Mas o Paulo, que está aqui comigo, tem uma banda ótima.”
Teve o episódio da saída do Charles Gavin, que trocou o RPM pelo Titãs...
Ficamos chateados. Mas nós mesmos tínhamos tirado o Charles do Ira. Então, ladrão que rouba ladrão... Ele se identificava mais com o nosso som. Com muita delicadeza, diplomacia e conversa, explicou que recebeu uma proposta irrecusável dos Titãs, que estavam estourados. Nós entendemos, não podíamos criticá-lo. Ficamos chateados, mas não brigamos. Baterista é uma espécie de prostituta. Decidimos que o baterista (Paulo Pagni, que substituiu Gavin) não estaria na capa do nosso primeiro disco.
Aí veio o primeiro álbum, “Revoluções por minuto”, de 1985, e vocês não estouraram imediatamente. Quando a chave virou?
O disco sai em maio de 1985 e caminha lentamente. Não é um sucesso imediato, mas éramos respeitados no underground da noite paulistana. O turning point acontece quando lançamos um remix de “Louras geladas”, o primeiro remix da história da música brasileira. Começa a tocar nas danceterias e faz o caminho inverso: vai da noite para o rádio. Usamos bateria eletrônica, foi perfeito para um remix, aquela coisa New Order. As pessoas enlouqueciam. Nunca houve nada parecido no Brasil, totalmente sintonizado com o que acontecia no mundo, superanimado, e levou o rock nacional para um outro patamar. E aí tudo acontece com muita rapidez. Ney Matogrosso dirigiu o show que deu origem ao disco “Rádio Pirata ao vivo”. Se tornou o LP mais vendido da história da música brasileira (até então).
Você lidou bem com todo aquele sucesso extraordinário? Alguma vez se assustou?
A partir dali, houve uma avalanche de acontecimentos, já numa velocidade descomunal. Em vários momentos, me assustou. Nós crescemos mais do que prevíamos e não tínhamos estrutura. Não havia manual. Todas as fábricas de vinil estavam fabricando o “Rádio Pirata ao vivo”. A gravadora não dava conta de fabricar tanto vinil. Houve uma superexposição. E, ao mesmo tempo que a gente queria parar, a gente queria continuar. Eu tive dificuldades estruturais. Eu costumo dizer que banda tem que ter dois caras muito importantes: um advogado e um contador. A gente que trabalha no showbusiness, às vezes só se preocupa com o show e esquece do business.
Quais foram os bastidores do fim da banda, em 1989?
Já não havia mais consenso entre nós quatro (além de Paulo, Schiavon e Pagni, o guitarrista Fernando Deluqui completava a banda). Foi irreversível. Houve uma explosão de egos aliada a um descontrole das finanças. E, quando começamos a fazer sucesso, todo mundo queria compor. Minha parceria com Schiavon era objetiva, a gente chegava para os outros dois com tudo pronto. Tanto que “4 Coiotes” é um álbum desigual, você não vê uma continuidade natural do “Revoluções por minuto”. Já é um esforço de incluir os outros dois. Schiavon ficou com ciúmes. Há um convite do Luiz Carlos Barreto para fazer um filme do RPM, com Fernanda Montenegro, roteiro do Marcelo Rubens Paiva. Perto de filmar, houve uma briga terrível e nos separamos.
Houve um retorno da banda para um projeto da MTV, em 2002. A amizade entre vocês voltou ao normal?
Esse projeto foi bem bacana. Mas, quando fomos dar continuidade, surgem exatamente os mesmos problemas, mas agravados pela idade. E houve uma segunda ruptura, dessa vez mais violenta, em 2003. Quatro anos depois, teve um convite para fazer biografia da banda, fiquei animado, e quis propor pra Sony um projeto de um box, uma coletânea bacana que fazem muito bem lá fora. Liguei pro Schiavon e falei: “Schia, vamos acabar com essa porra.” Almoçamos e fizemos as pazes. Mas o Schiavon queria uma turnê e eu disse que, na minha opinião, turnê só com um álbum de inéditas. Aí ele ficou meio assim. Em 2011, ele me procura pra voltar o RPM. Eu tinha acabado de lançar um disco com Toquinho. Eu topei, mas a condição seria o disco de inéditas. Preparamos e estreamos o show do “Elektra”.
Depois de um terceiro término, os três integrantes, juntos, te processaram. Foi um litígio que se arrastou por anos.
Em 2016, fiz uma reunião e disse que precisávamos parar. Não dava mais, as pessoas têm um limite para ver o mesmo filme várias vezes. Precisa de novo clipe, nova música, novo show. Eles, meio que a contragosto, concordaram. O último show foi num cruzeiro, nós, Capital Inicial e Blitz. Foi terrível, houve uma tempestade, turbulência no navio que quase teve que voltar. Quase não teve show, todo tipo de energia negativa. Depois da apresentação, Nando foi até a minha cabine e disse: “Conversamos nós três, não queremos mais parar, queremos continuar.” Disse para ele que era um assunto sério, pra gente ter quando voltasse pra São Paulo. Foi a última conversa que tivemos. Logo depois, eles me processaram. Eles alegaram que eu quis sair da banda. E nunca saí da banda. Eu precisava era de um tempo.
Muita gente te julgou, dizendo que você havia proibido eles de usarem a marca RPM.
Eles me processaram para que eu não cantasse mais as músicas do RPM. Mas, até 2022, o INPI só permitia que uma pessoa jurídica fosse dona de uma marca. No RPM, ficou na minha empresa. Em 2022, teve a convenção de Madri, que abre juridicamente possibilidade de marcas serem divididas por várias pessoas jurídicas. Quando isso acontece, imediatamente divido com eles. Eu nunca quis a marca RPM. O que eu queria, depois de tantas idas e vindas, quando voltamos em 2011, era que só se usasse RPM com os quatro juntos. E houve um acordo pra isso, que depois foi derrubado.
Em agosto, aconteceu um acordo entre você e o Fernando Deluqui, que agora pode usar o nome RPM O Legado para se apresentar. Você ficou contente com o desfecho?
Me mantive em silêncio nesses sete anos. A Justiça não é sobre a verdade, é sobre a melhor versão. A melhor versão que cativa o juiz vence. O resultado final me pareceu lógico. Nenhum de nós isoladamente tinha o direito de fazer isso (usar a marca RPM). Eu estava pleiteando que esse acordo, que visa a respeitar o que nós fizemos, o peso da marca, fosse respeitado. Assim que terminou o último show, entraram na Justiça contra mim.
Schiavon morreu em 2022. Vocês se reconciliaram antes da partida dele?
Última vez que estivemos juntos foi no jantar do navio. Mas nós tínhamos um médico amigo em comum. Ele me disse: “Schia não vai durar muito.” E eu disse que, se eu fosse bem-vindo, visitaria ele no hospital. E esse nosso amigo voltou dizendo que o Schiavon falou que preferia que eu não visse ele daquela maneira. Já estava muito debilitado. Respeitei. Me entristeceu muito a forma como tudo aconteceu. (Ricardo Ferreira)