Primeiro livro do escritor pernambucano Osman Lins, "Os gestos" volta em edição caprichada
Estreia do autor de "Lisbela e o prisioneiro" é exemplo de obra agudo senso de observação psicológica
Nem uma importante efeméride acontecida em 2024 (o centenário de seu nascimento) conseguiu tirar do segundo plano a importância da obra do escritor Osman Lins. Desde sua morte, em 1978, a tentativa de resgate veio com ações isoladas, como o relançamento de seus principais livros pela Companhia das Letras nos anos 2000 (hoje fora do catálogo) e, em 2003, a atenção para a peça de teatro “Lisbela e o prisioneiro” graças à versão cinematográfica de Guel Arraes, além de uma seleção de contos organizada por Sandra Nitrini e lançada pela Global.
É pouco para um autor cuja escrita foi classificada como “madura e exemplar” pelo crítico Alfredo Bosi. Autor de obras fundamentais da literatura brasileira, como “Nove, novena” e “Avalovara”, Osman Lins acreditava que a escrita não podia fazer concessões, o que é possível notar em seu primeiro livro de contos, “Os Gestos” (1957), cuja nova e caprichada edição lançada agora pela Edições Olho de Vidro é uma isolada homenagem ao centenário de seu nascimento.
Galeria de personagens
A obra exigiu mais de dez anos de elaboração porque Lins criava ao estilo machadiano, com frases curtas e uma forma trabalhada, recheada de imagens e sempre amparada por um agudo senso de observação psicológica. Com isso, criou pequenos retratos da vida, como a dolorosa despedida entre avó e neto, ou a viúva que comenta com o amante a morte nada acidental do marido, também o derradeiro dia de trabalho de um trapezista, ou ainda um menino que morre enquanto o pai dança para distraí-lo.
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“Uma galeria de personagens, as quais em sua maior parte se incluem na categoria do que hoje entendemos por excluídos”, observa a professora de literatura Sandra Nitrini, no prefácio de “Melhores Contos”. É o caso de André, idoso que é protagonista da primeira história de “Os gestos”. Com uma mudez que o impede de se comunicar com a mulher e as filhas, ele vive uma situação desesperadora porque raramente é compreendido pelos familiares. “Minhas palavras morreram, só nos gestos sobrevivem. Afogarei minhas lembranças, não voltarei a escrever uma frase”, reclama.
O leitor, assim, não apenas invade o mundo interior de André como é levado por ele na sua busca de entendimento daquelas pessoas. “A solidão, tema aglutinador de outros advindos dos relacionamentos humanos, é experimentada no convívio direto com os parceiros”, continua Nitrini.
Uma outra espécie de mudez aparece no conto “Elegíada”, em que um senhor conversa mentalmente com a mulher morta, durante o velório. Nesse discurso interiorizado, despontam tanto as lembranças dos momentos vividos com a parceira quanto as reclamações contra filhos e netos que, sob pesadas ordens, o tratam como criança. Em seu desabafo mental, ele revela o problema da solidão do idoso na sociedade atual, marcada pelo individualismo. “Minha dor não é violenta. É cansada. Mas é tão vasta, tão desalentada e profunda... Eu vou ficar tão sozinho, querida...”, termina assim o conto.
Modernidade
As histórias curtas do pernambucano Osman Lins caminharam em duas direções bem distintas, que marcam a sua evolução literária. Na primeira, predominam personagens marcados pela solidão e o abandono, enquanto na segunda se destaca o experimentalismo estilístico, que oferece um desafio ao leitor. Os contos trazem pistas do estilo que utilizaria em seus romances mais ambiciosos, como “Avalovara” (1973), considerado sua obra-prima. Ao lado do conjunto de narrativas “Nove, novena” (1966), representa a virada que inaugura a segunda fase de sua obra. A experimentação na escrita de “Avalovara” — como a combinação de figuras como a espiral e o quadrado ou a personagem sem nome, identificada por um sinal tipográfico — foi interpretada pelo crítico Antonio Candido como “um momento de decisiva modernidade na literatura brasileira”.
A visão profissional e a forma como encarava o ofício de escritor obrigavam Lins a um interminável exercício de reescrita, que consumia anos de trabalho até atingir a harmonia esperada. Ao produzir sua obra, ele jamais aceitou desviar de seu compromisso como autor que o impedia de fazer concessões em busca do sucesso fácil. O que desgraçadamente pode explicar o ocaso imposto agora aos seus livros.
Como observou o crítico José Castello, trabalhar, para Lins, não era apenas escrever, mas entregar-se a um esforço anterior de meditação, de raciocínio e especulação, que deve preceder o ato da escrita para que ela não ceda a nenhum impulso normativo.
No prefácio de “Os gestos”, escrito para a segunda edição do livro em 1975 (e reproduzido na atual publicação), o próprio Lins determina sua ambição literária em dois itens: “Lograr uma frase tão límpida quanto possível e fundir num instante único os fios de cada breve composição, como se todo o passado ali se adensasse.”
"Os gestos". Autor: Osman Lins. Editora: Olho de Vidro. Páginas: 136. Preço: R$ 89,90. Cotação: ótimo.