Projeto de lei que tipifica injúria racial em Portugal sequer foi votado, diz autora
"Tive esta preocupação porque a lei como está não protege ninguém do ódio racial. É uma lei que complica a vida da vítima e facilita a do agressor", disse a historiadora
A historiadora Joacine Katar Moreira, que criou o projeto de lei que tipifica o crime de injúria racial no Código Penal português, disse em entrevista ao Globo que o texto sequer foi votado no parlamento. Ela destacou o quanto essa lacuna na legislação implica para as vítimas de racismo no país lusitano, principalmente se forem estrangeiras ou não terem recursos de pagar um advogado.
"Infelizmente o meu projeto de lei da legislatura anterior [Projeto de Lei 922/XIV/2ª] de 1º de setembro [de 2021], acabou por não ser votado. Entretanto o governo caiu e fomos para novas eleições onde já não fui candidata", afirmou. "Tive esta preocupação porque a lei como está não protege ninguém do ódio racial. É uma lei que complica a vida da vítima e facilita a do agressor".
Sobre o episódio de racismo sofrido pelos filhos de Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso na Costa da Caparica, Moreira elencou alguns obstáculos que precisam ser enfrentados com base na legislação atual.
"Parece-me que o comportamento descrito seria facilmente reconduzido ao crime de injúria, previsto no artigo 181º do Código Penal, segundo o qual 'quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe fatos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias'", citou, destacando, entretanto que este delito não tem especificidade em casos de discriminação racial.
Leia também
• Em Portugal, caso de racismo pode dar 5 anos de prisão
• Ewbank e Gagliasso levam caso de racismo para a Justiça
• Além de filhos de Ewbank e Gagliasso, veja outros casos de racismo que geraram comoção
Moreira explicou que o Código Penal português dispõe do artigo 240º, que diz respeito à discriminação ou incitamento ao ódio e violência, e a conduta da autora das ofensas a Titi e Bless se enquadraria no item que configura crime quem "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de gênero ou deficiência física ou psíquica". No entanto, ela chama atenção que este artigo exige que a atitude, para ser assim categorizada, "tenha sido tomada publicamente, através de um meio destinado à divulgação".
"Ou seja, exclui-se do âmbito desta norma qualquer conduta que, mesmo preenchendo uma das alíneas do nº 2 do artigo 240º do Código Penal, ocorra numa interação entre agressor e vítima que não seja em público ou que, tendo lugar em público, não seja apta à divulgação. Isto é, uma declaração pública injuriosa não será suficiente para que sejam preenchidos os elementos deste tipo de crime", destacou.
Moreira apresentou então algumas dificuldades que podem surgir em casos de racismo em Portugal.
"Ir pelo caminho do crime de injúria tem dois problemas, essencialmente: o primeiro é que, ao contrário de crimes como de homicídio ou ofensa à integridade física, o crime de injúria não prevê qualquer agravamento caso seja praticado por motivação discriminatória do autor. Há possibilidade do juiz reconhecer, efetivamente, essa motivação pelo caminho do artigo 71º do Código Penal (agravante geral), mas esse caminho é muito raramente adotado", avaliou.
O outro problema, segundo a historiadora, é que a injúria é um "crime particular", o que exclui a possibilidade de a vítima sem poder aquisitivo dar prosseguimento na Justiça contra seu agressor por não conseguir bancar um advogado.
"Ou seja, a legitimidade do Ministério Público em abrir e dar seguimento ao procedimento criminal é muito mais limitada. A pessoa ofendida deverá apresentar queixa-crime junto das autoridades policiais ou judiciárias competentes, ou seja, manifestar clara e expressamente que tem vontade que decorra o processo criminal, mas também constituir-se como assistente e deduzir acusação particular (v. artigo 50º do Código de Processo Penal), atos que são particularmente onerosos para o(a) ofendido(a), pois implicam o pagamento de taxa de justiça e a constituição de advogado".
Moreira ressaltou ainda que "embora a Segurança Social disponha de um esquema de apoio judiciário para vítimas de crime e outras pessoas que precisem de determinada representação em processos judiciais que não tenham recursos econômicos suficientes para fazer valer deste direito, o apoio judiciário é extremamente limitado para pessoas não-portuguesas que não estejam em situação regular".