'Quarto de Despejo' completa 60 anos como uma das obras mais importantes da literatura brasileira
Os diários de Carolina de Jesus, escritos entre 1955 e 1960, se transformaram em um dos livros mais debatidos
“É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” O dia 19 de agosto de 1960 foi diferente do habitual à época. Em uma década que a industrialização acelerava no tronco Centro-Sul do País, os negros ficavam relegados em meio ao desenvolvimento econômico provocado pela modernização dos meios de produção. Entretanto, os escritos de uma mulher pobre, negra e favelada ganhariam, pela primeira vez, o destaque necessário para balançar as estruturas da elite paulistana. O livro “Quarto de Despejo: diários de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus, era lançado naquela noite pela editora Francisco Alves, tendo 1.500 convidados como testemunhas de um episódio marcante para a literatura brasileira. A obra acaba de completar 60 anos, sendo um dos livros brasileiros mais vendidos, debatidos e traduzidos de todos os tempos.
Carolina foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, que foi enviado para fazer uma pauta sobre a Favela do Canindé, para mostrar a pobreza do local às margens do rio Tietê. Lá, ele se surpreendeu com os escritos daquela mulher favelada e voltou com a proposta de publicar seus textos no jornal “Folha da Noite”, um dos principais exemplares da capital paulista. Trechos do seu diário se transformaram na reportagem “O drama da favelada escrito por uma favelada”, publicado no mesmo periódico, em 1958. Na época, houve críticas e comentários negativos acerca publicação, em que a elite alegava que era impossível uma mulher de tal origem escrever daquela forma: “Onde já se viu, uma negra semianalfabeta e ainda por cima favelada, escrevendo desse jeito”, diz um dos trechos do livro de Audálio "Tempo de Reportagem - Histórias Que Marcaram Época no Jornalismo Brasileiro" (Leya).
Segundo Audálio, uma outra matéria ainda foi publicada na revista “O Cruzeiro”, com as correções do repórter em relação à primeira. “A despeito de todas as falhas – eu já escrevera textos bem melhores e muitos outros escreveria depois –, considero até hoje que aquela foi a mais importante reportagem que fiz em toda a minha carreira.”, disse o autor no livro. Dois anos depois, “Quarto de Despejo” foi publicado. Para o lançamento, a editora Francisco Alves só havia preparado 10 mil exemplares. Esgotaram-se em uma semana. Não estavam preparados para o novo fenômeno na literatura nacional e, segundo as publicações da época, eram raros os livros que batiam essa marca no período.
Não demoraria muito para a obra de Carolina Maria de Jesus ganhar novos ares. Aos poucos, a escritora estampava as principais manchetes do mundo, a exemplo do “Le Monde” e revista “Times. “A Time mandou um enviado especial ao Brasil, David St. Clair, que chegou disposto a mostrar como Carolina passara, de um momento para outro, a viver um estranho sonho de Cinderela.”, contou o jornalista. Àquela altura, autora já era lida e debatida no Globo. “Quarto de Despejo” foi traduzido em 13 idiomas, vendido em 40 países e bateu a marca de 1 milhão de exemplares vendidos, antes mesmo de escritores brasileiros consagrados, como Jorge Amado e Paulo Coelho.
Diário da Peleja
O impressionante de ter levado Carolina à fama foi o registro da pobreza. Os diários foram escritos entre 1955 e 1960. Neles, a escritora relata como era a vida junto a seus três filhos, João José, José Carlos e Vera Eunice, na favela do Canindé, e sua rotina como catadora de papel. A fome era tema recorrente: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”, conta com detalhes nos diários.
Entretanto, engana-se quem acha que o livro se resume ao sofrimento da autora-personagem. Embora, tenha tido pouco tempo de estudo, várias das páginas contavam a ausência política nas favelas, retratava sobre segurança, priorizava a educação dos filhos e defendia sua própria independência enquanto mulher. Não era casada por opção, dizia que conseguia se sustentar sozinha com os filhos. Com a obra, ela conseguiu sair do subúrbio.
A mineira, que nasceu em Sacramento, em 1914, morreu aos 62 anos por causa de uma insuficiência respiratória em Palhereiros, na Zona da Sul, em 1977. Apesar do sucesso com a obra que a colocou ao mundo, em vida, Carolina não desfrutou por muito tempo o reconhecimento do seu trabalho. Em julho passado, a Companhia das Letras anunciou um projeto que recuperará seus diários, em que muitos se encontram na cidade natal, para divulgar-los, tendo nomes como Vera Eunice, sua filha, e a escritora, Conceição Evaristo, à frente do projeto.