LITERATURA

"Quero escrever um livro sobre uma pessoa que tem um braço mágico", diz poetisa atacada por pitbull

Escritora Roseana Murray teve alta nesta quinta-feira. Em casa, relembrou o episódio, esbanjou alegria de viver e dividiu planos para o futuro

Roseana Murray é uma das poetas brasileiras mais reconhecidas da atualidadeRoseana Murray é uma das poetas brasileiras mais reconhecidas da atualidade - Foto: Juliana Mello/Divulgação

A parede amarela, janelas e portas azuis. Uma plaquinha no quintal dizia “Casa de Juan y Roseana”. O casal vive em Saquarema há pelo menos 20 anos, onde se refugiam para ler e escrever, longe do burburinho urbano. A premiada autora de literatura infantil, com mais de 100 livros publicados, Roseana Murray voltou para casa ontem, depois de 13 dias internada no Hospital estadual Alberto Torres, em São Gonçalo. Ela sobreviveu a um ataque brutal de três cães da raça pitbull, quando saía para o exercício matinal. Três tutores dos animais chegaram a ser presos.

Tudo na história é carregado de simbolismo. O dia da alta coincide com o Dia Nacional do Livro Infantil. Na saída do hospital, foi aplaudida pela equipe médica, por parentes e amigos. No ataque, ela perdeu o braço direito, com o qual escrevia, e uma orelha. Disse que vai aprender a escrever com a outra mão, assim como as crianças. Ontem também foi o dia em que ela fez questão de dar o primeiro autógrafo com a mão esquerda. Assinou no livro “Jardins”, ilustrado por Roger Mello, e deu de presente para a reportagem. Está escrevendo mais três com a escritora Penélope Martins e quer fazer um sobre “o braço mágico”, também para crianças.

Os próximos dias serão de cuidados. Ela deve voltar ao hospital na próxima terça-feira para avaliação da equipe médica, a quem faz questão de enaltecer. Roseana só falou da dor quando questionada sobre. No mais, a reação era expressar a alegria de estar viva e o que quer fazer com o que lhe aconteceu.

Logo após a alta, Roseana dá os primeiros autógrafos com a mão esquerda. Ela contou que quer aprender a escrever com a outra mão, assim como as crianças. A escritora fez questão de assinar o livro “Jardins”, ilustrado por Roger Mello, e deu de presente para a repórter.

 

O relato de Roseana
“Eu vivo em Saquarema em uma casa muito bonita, com o meu marido, o espanhol Juan Arias. A gente tem uma vida quase de convento, porque a gente lê, escreve, dorme cedo, come saudável. Ele é paciente renal, então tem uma comida muito regulada. Nossa vida não tem novidades. As novidades são os livros que escrevo, os meus eventos aqui em casa. A gente fica aqui à noite, eu passo o dia lendo, escrevendo. Tenho uma parceira que está fazendo livros de poesia comigo que já vão sair — e que está comigo na minha casa para ajudar a cuidar de mim, a Penélope Martins. Minha vida é essa: ler e escrever.

De manhã cedinho vou para a academia. Acordo às 4h50, faço meu café, cuido dos gatinhos, tomo banho, me visto e saio de casa. Nesse dia foi assim. Eu tomei o meu café, tomei banho, me vesti. Quando cheguei lá fora, eu vi que os pitbulls estavam soltos e que o portão estava aberto. Mas, não sei por que, eu não desisti, nem passou pela minha cabeça. Eu pensei: ‘eles não vão me atacar’. Só que eles me atacaram, os três de uma vez.

E eu acho que foi muito curioso, porque a gente leu há algumas semanas, no nosso clube de leitura, o livro “Escute as feras”, de Nastassja Martin, que foi atacada por um urso na Rússia. O caso dela foi muito grave também, ele quebrou a mandíbula dela, arrancou um pedaço do rosto. Ela estava em um povoado, que tinha uma boa relação com os ursos, foi fazer um passeio e quis descer sozinha. Ficou desatenta e deu de cara com o urso.

Eu acho que fiquei desatenta. Eu não pensei que três pitbulls soltos num lugar onde eu iria passar poderiam gerar uma tragédia. Eu não pensei. Eu estive totalmente desatenta a isso. Não pensei ‘então, não vou’, que era o que eu deveria ter pensado.

‘Eles comeram meu braço’
Os três vieram e me atacaram ao mesmo tempo. Me derrubaram e eu não sei como eu consegui me proteger, porque eles chegaram até a beira dos meus olhos. Eles feriram muito gravemente também o meu braço direito. Essa mão que, para mim, ainda está aqui, e esse braço, eles estraçalharam, comeram.

Fiquei gritando ‘socorro, vou morrer! Socorro, alguém me acode!’, mas não tinha ninguém. Era muito cedo. Mas tinha um maratonista correndo e, acompanhando ele, um homem de carro. Eles me viram e o motorista conseguiu colocar os cachorros dentro da casa. Ali eu sabia que eles não iriam mais me atacar, mas já estava muito fraca. Eu tinha perdido muito sangue, foram três litros. De repente, começaram a aparecer outras pessoas. Uma delas era o meu caseiro, que tinha ido deixar a esposa na academia. Eu só gritava ‘alguém faz alguma coisa por mim’.

Depois os bombeiros chegaram, me colocaram na ambulância e me falaram que ia chegar um helicóptero. Eu sentia muita dor. Pedia remédio, mas disseram que só poderia dentro do helicóptero. Foi meu primeiro voo. Assim mesmo, eu achei lindo!

Quando chegamos no hospital já tinha uma equipe me esperando. Eu não lembro muito bem. Me intubaram, fui operada. As pessoas falavam em fratura exposta. Eu sentia a mão direita toda esmigalhada. Eu só fui tomar consciência depois que me desintubaram. Quando o André, meu filho, chegou, eu perguntei: ‘André, e meu braço?’. E ele falou: ‘Você perdeu o braço, mãe’. Eu respondi: ‘Mas não dava para salvar o meu braço?’, e ele disse: ‘Não dava, mãe. Ou era o braço, ou era você’. Não tinha salvação. Estava totalmente destruído. Eles comeram meu braço.

Eu tenho a cena da minha cabeça apoiada debaixo do meu braço, que foi a grande proteção, porque eles não destruíram o meu rosto, como aconteceu no caso da mulher atacada pelo urso. Foram 13 dias de muita dor, mas fiquei bem. Hoje é o meu melhor dia. No meu braço, tenho esse coto. Ele dói, mas o que dói mesmo é o braço inteiro e a mão, que ainda sinto toda esmigalhadinha. Uma dor alucinada.

Foi uma surpresa maravilhosa esse hospital, os médicos e enfermeiros tão amorosos. Foi a melhor surpresa da minha vida. Todos trabalhando numa única orquestração para o paciente ficar bem. Tem que valorizar o SUS. Eu gostaria que todos os hospitais fossem assim, que os brasileiros não precisassem esperar um ano na fila por uma cirurgia. Vou fazer um sarau no hospital e vou dar um livro para cada pessoa que cuidou de mim autografado com a mão esquerda.

Também quero escrever um livro infantil sobre uma pessoa que tem um braço mágico, no lugar do amputado. Tive essa ideia no segundo dia. Precisava muito fazer alguma coisa com esse braço desaparecido para eu aguentar.”

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