Samurai negro em novo game gera revolta e polêmica, envolvendo jogadores e até Elon Musk; entenda
Para gamers, criadores de Assassin's Creed Shadows, que sai em novembro, querem apenas ''lacrar''
Nos primeiros segundos do trailer promocional do videogame Assassin's Creed Shadows, a figura de um ninja emerge da floresta. De repente, a imagem muda para um povoado ribeirinho de telhados de palha escondido nas montanhas, sugerindo que a história vai se desenrolar no Japão feudal.
Segundos depois, outro guerreiro aparece nas chamas de um vilarejo destruído: é o outro protagonista do jogo, um samurai negro chamado Yasuke.
Alguns gamers se revoltaram com essa aparição, convencidos de que a franquia, conhecida por suas recriações imersivas de jogos do passado, queria "lacrar" ao incluir um personagem negro em sua representação do Japão do século XVI.
Elon Musk ampliou o debate com uma postagem nas redes sociais dizendo que isso era um exemplo de como a "DEI mata a arte", usando a sigla de Diversidade, Equidade e Inclusão. Ao mesmo tempo, desenvolvedores de jogos receberam ataques pessoais e ameaças de morte no que foi uma verdadeira campanha de assédio on-line.
A reação negativa que recaiu sobre Assassin's Creed Shadows (cujo lançamento está programado para 15 de novembro para PC e os mais novos consoles Xbox e PlayStation) obrigou a empresa francesa Ubisoft a lembrar os jogadores de que seus games são, em última análise, obras de ficção. Segundo especialistas, Yasuke realmente existiu. Provavelmente, foi escravizado quando criança, antes de chegar ao Japão, e mais tarde ascendeu à classe samurai durante o período Sengoku.
Embora baseados na história, os jogos Assassin's Creed também incluem elementos fantásticos como espiões hábeis, alienígenas divinos e armas mitológicas. Um assassino encapuzado da série apareceu recentemente como figura de destaque na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris, na qual o personagem fez parkour pelas paredes dos museus da cidade.
— A liberdade criativa de nossas equipes é uma causa pela qual estou disposto a dar a vida — comentou Marc-Alexis Côté, produtor executivo e líder da franquia Assassin's Creed, que atingiu quase 200 milhões de jogadores.
Ele afirmou que tinha previsto que os fãs fariam exames mais profundos do cenário feudal japonês do que fizeram nas versões anteriores da franquia, que permitiram a exploração de Atenas durante a Guerra do Peloponeso, de Florença no auge do Renascimento Italiano e de Londres durante a Revolução Industrial.
Desde que a série começou, em 2007, os jogadores pediam um jogo Assassin's Creed ambientado no Japão. Côté disse que o orçamento para contratar pesquisadores triplicou, foram incorporados estúdios japoneses à equipe de desenvolvimento e que houve o feedback de testadores japoneses — que sugeriram, por exemplo, detalhes culturais como fazer os personagens tirarem os sapatos ao entrar em casa, costume arraigado em muitos países do Leste Asiático.
Côté contou ainda que, durante uma revisão recente, os funcionários perceberam que um personagem estava escrevendo um poema a uma mesa de chá e não a uma escrivaninha:
— Todo mundo estava quase morrendo de ataque cardíaco por causa do erro. Fiquei surpreso com quanto todos se importaram.
Derrapadas na História
Fãs atentos da franquia já identificaram imprecisões históricas antes, como as igrejas de madeira em Assassin's Creed Valhalla que eram, na verdade, da Noruega do século XII, mas que apareceram na versão do jogo que se passava na Inglaterra Viking do século IX.
Mas os protestos contra Assassin's Creed Shadows têm sido consideravelmente mais altos. A inclusão de Yasuke foi a reclamação principal, mas os observadores também apontaram para a presença de arquitetura chinesa e bandeiras inapropriadas para o período. A controvérsia se tornou tão acalorada que um pequeno partido político de direita no Japão pediu formalmente ao governo que comentasse o que considerava imprecisões históricas.
Depois da reação negativa on-line, a equipe de desenvolvimento tentou amenizar outras preocupações com a autenticidade do jogo, pedindo desculpas, em uma longa declaração, pelos materiais promocionais que, segundo ela, incomodaram alguns fãs japoneses: "Compartilhamos a paixão de vocês pela história e respeitamos profundamente o cuidado que têm com a integridade histórica e cultural de sua rica herança. Desde o início, a série usou de licença criativa para incorporar elementos de fantasia e criar experiências envolventes e imersivas. A representação de Yasuke em nosso jogo é uma ilustração disso."
Kazuma Hashimoto, consultor e tradutor japonês na indústria de videogames, disse que a recepção de Assassin's Creed Shadows foi positiva no Japão.
— Foram as pessoas no Ocidente que ficaram chateadas ao ver Yasuke como um samurai — observou, explicando que muitos dos comentários negativos on-line escritos em japonês pareciam ter sido traduzidos grosseiramente do inglês.
Segundo Yu Hirayama, historiador da Universidade de Ciências da Saúde do Japão, especializado no período Sengoku, o status de samurai de Yasuke não estava em questão. "Existem poucos documentos históricos sobre ele, mas não há dúvida de que era um 'samurai' que serviu Nobunaga", escreveu nas redes sociais.
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Chegada ao Japão
Ele se referia a Oda Nobunaga, guerreiro e senhor feudal que ajudou a unificar o Japão e forneceu a Yasuke uma casa, um salário e uma espada. De acordo com registros históricos limitados, Yasuke chegou ao Japão a serviço de um padre jesuíta e acabou sendo convocado por Nobunaga. Este elevou o status de Yasuke por razões desconhecidas, e pouco se sabe sobre o que aconteceu quando o domínio de seu benfeitor diminuiu. Alguns registros indicam que Yasuke acabou por ser devolvido à custódia dos jesuítas.
Coté disse que historiadores contratados pela Ubisoft trabalham com tradutores em documentos primários para criar a experiência mais autêntica possível:
— Nosso material de origem não é a Wikipedia.
Mas essa autenticidade também precisa se misturar ao mundo fantasioso do jogo, no qual os personagens pulam de prédios sobre pilhas de folhas e saem ilesos ou encontram criaturas mitológicas na floresta.
Jonathan Dumont, diretor criativo do Assassin's Creed Shadows, afirmou que Yasuke deu aos jogadores uma perspectiva diferente do outro protagonista, o ninja chamado Naoe, que vem de uma fazenda isolada entre as montanhas japonesas. Segundo ele, ter dois protagonistas permite que os jogadores alternem entre o estilo de jogo mais combativo de Yasuke e a jogabilidade clássica de um assassino como Naoe.
— Parecemos estudantes toda vez que vamos tratar de um jogo como Assassin's Creed — comentou Dumont, que está na franquia há quase uma década.
O cenário e a história foram fortemente inspirados em "Crônica do Senhor Nobunaga", relato histórico compilado por um dos vassalos do senhor japonês, Ota Gyuichi. A diretora narrativa do jogo, Brooke Davies, disse que revisitava o livro quase diariamente e que estudou um relato de Luís Fróis, missionário português que viveu no Japão durante o período Sengoku e que se referiu a Yasuke em cartas. Essas inspirações passam para o jogo; Yasuke conhece Gyuichi durante suas viagens pelo Japão, e o missionário também faz uma aparição.
Os líderes da Ubisoft anunciaram que não recuariam na criação de jogos com reviravoltas surpreendentes e protagonistas diversos.
— Queremos que as pessoas fiquem apaixonadas por história. O que isso significa? Permanecer fiel a momentos bem documentados e a figuras históricas, mas não se esquivar de ter um ponto de vista crítico e desafiar clichês para ir além do que é a verdade aceita — declarou Côté, o produtor executivo, acrescentando que essa abordagem inevitavelmente abriria Assassin's Creed para mais críticas no futuro, mas que os desenvolvedores decidiram que era um risco que valia a pena correr.
Davies, a diretora narrativa, disse que, embora as ameaças on-line contra seus colegas tenham dificultado o ciclo de produção do jogo, a equipe permaneceu confiante na narrativa:
— As fábulas que contamos com nossos protagonistas e as muitas emoções geradas pelos jogos são universais. Isso faz com que as histórias de quase 500 anos pareçam relevantes ainda hoje.