Silvio Santos, teatro e política: relembre a última entrevista de Zé Celso à Folha de Pernambuco
Dramaturgo e diretor veio ao Recife, em 2018, para participar do festival Transborda - Usina Teatral
José Celso Martinez Corrêa, que faleceu na manhã desta quinta-feira (6), era uma força cultural e política. Seu ativismo teatral o colocou na mira da ditadura militar e, nas últimas quatro décadas, fez com que ele travasse uma disputa judicial com o apresentador Silvio Santos pelo terreno ao lado do Teatro Oficina.
A personalidade aguerrida de Zé Celso dá o tom da entrevista que ele concedeu, por e-mail, à Folha de Pernambuco em setembro de 2018. Na ocasião, o dramaturgo se prepara para retornar ao Recife, onde participaria, dias depois, do festival Transborda - Usina Teatral, com a conferência "O teatro no Brasil ainda é possível?".
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Na conversa, Zé Celso revelou certo “prazer” na disputa com Silvio Santos. “Foi um alimento antropofágico revitalizador contracenar com um ser humano que é uma entidade do capital vídeo-financeiro personalizada”, disse. Às vésperas das eleições presidenciais daquele ano, o artista ainda falou sobre o clima político daquela época.
Relembre a última entrevista de Zé Celso à Folha de Pernambuco:
Parafraseando o título da conferência que você traz ao Recife: o teatro no Brasil ainda é possível?
É uma impossibilidade absoluta, eternamente possível. Nestes tempos que vivemos no Brasil, paradoxalmente, nós loucos de teatro estamos nos virando do avesso e conseguindo produzir peças inacreditavelmente vivas e com um público fissurado. Apesar disso, estamos com problemas imensos, como por exemplo, o de vir até Recife com "O Rei da Vela" e "Roda Viva 2018". Em vez disso, sou convidado para vir fazer uma conferência sobre a impossibilidade ou não do teatro.
Desde os anos 1980, você vem lutando para que o projeto imobiliário do Grupo Silvio Santos não seja construído na área onde está localizado o Teatro Oficina. O que te motiva a persistir numa disputa como essa durante tanto tempo?
São 38 anos de uma luta histórica maravilhosa. Foi um alimento antropofágico revitalizador contracenar com um ser humano que é uma entidade do capital vídeo-financeiro personalizada. Se há duas coisas que agradeço na vida, elas são: desde 1993 até hoje ter criado neste inspirador teatro todo aberto pra natureza - criado por Lina Bardi e Edson Elito - e ter contracenado, durante quase 40 anos, com Silvio Santos antes e depois do “golpeachement”. Por enquanto, ele não quer mais trocar por um terreno, mas sim aceitar o monopólio da revitalização do Bixiga, isto é: o genocídio dos habitantes do Bixiga, proposto por Dória e Alckmin. Aprendi muito em criar num teatro aberto para a natureza e sobre o capitalismo “especulativista”.
Até quando você pretende seguir nessa empreitada de manter em atividade o Teatro Oficina?
Não sou eu, mas a Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona, que com muitos artistas de talento em todas as áreas, trabalhando juntos já há muitos anos, criou o milagre de uma associação autogovernada com um poder de vida que transcende minha existência.
Você viveu a experiência de fazer teatro em plena ditadura militar. Hoje, após a abertura democrática, as coisas estão mais fáceis para os artistas?
Não se pode falar em abertura democrática depois do “golpeachment”. Todas as portas estão fechadas desde 2016, quando perdemos o patrocínio da Petrobras para a Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona. Estamos travando uma batalha insana, felizmente com todo o apoio de multidões amantes da vida, contra a destruição de todos os órgãos de proteção do patrimônio cultural estadual, municipal e federal, que o Grupo Silvio Santos - com seus melhores advogados da América Latina - quer transformar em organismos de proteção à especulação imobiliária. Boto fé que, numa ambiência mais democrática, Silvio Santos ainda tenha a lucidez de utilizar o mesmo instrumento de transferência de seu potencial construtivo para outras áreas da metrópole, em terrenos cedidos pela Prefeitura, como aconteceu recentemente com o Parque Augusta.
Por falar em ditadura, qual é a sua percepção sobre o processo político que o Brasil está vivendo atualmente, às vésperas de uma eleição presidencial?
Nos últimos resultados das pesquisas do Ibope, "Ele Não" [em referência ao então candidato à presidência Jair Bolsonaro] não saiu do lugar, anunciando a ascensão de forças populares. Mas é evidente que o falso centro e todas as direitas vão acabar se copulando. Então, teremos um confronto f*. Mas as forças antinazistas - seja qual for o resultado eleitoral - vão ter que continuar atentas e em ação.