Sob Bolsonaro, Iphan vive paralisia mais longa desde antes da ditadura militar
Tombamentos e registros são as mais importantes formas de preservação do patrimônio do país
Um alvo constante de críticas do governo de Jair Bolsonaro, o Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, principal órgão de preservação do patrimônio cultural do país, vive sua maior paralisia em 65 anos -algo que não foi visto nem na ditadura militar.
Além dos ataques do presidente e da troca de funcionários do alto escalão do Iphan, foi sob o governo Bolsonaro que o conselho consultivo do Iphan, a instância máxima para tombamentos e registros de bens imateriais, ficou sem se reunir por um ano e oito meses.
A instância debate e dá o voto final para encaminhamento e aprovação desses processos. Sem os encontros, eles estão todos parados -o que pode acarretar em uma série de bens, materiais ou imateriais, sem o devido cuidado.
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Tombamentos e registros são as mais importantes formas de preservação do patrimônio do país. O Iphan tem em sua lista de bens tombados e registrados, por exemplo, o Teatro Oficina, em São Paulo, o centro histórico de Salvador, Rio de Janeiro e Ouro Preto, em Minas Gerais, entre outras cidades históricas, e acervos como o do Museu Lasar Segall, em São Paulo, e o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio. Tombar um imóvel e seu entorno pode atravancar o avanço de projetos imobiliários -restrição que o próprio presidente já se posicionou contra.
Na famosa reunião ministerial de abril de 2020, por exemplo, o presidente ironizou que para preservar um "cocô petrificado de índio" o Iphan teria travado obras do empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan e apoiador próximo do presidente. "O Iphan para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô, para a obra", disse Bolsonaro, na reunião.
Kátia Bogéa, que presidia o órgão na época do embate com Hang, atribui sua exoneração pelo governo Bolsonaro à paralisação da obra do empresário.
Bolsonaro também já acenou usar tombamentos como ferramenta política. Ele ameaçou interferir no Iphan para tombar o Complexo Esportivo do Ibirapuera, o que pode impedir sua concessão à iniciativa privada -plano de seu adversário, o governador paulista João Doria, do PSDB.
Desde que Bolsonaro tomou posse, o conselho consultivo do Iphan se encontrou só nos dias 12 e 13 de junho de 2019 e em março deste ano. Essa interrupção não foi vista nem sequer no governo Collor, que chegou a extinguir o conselho e paralisou por um ano e quatro meses suas atividades, entre 1991 e 1992. Entre 1955 e 2018, a média de encontros foi superior a três por ano.
Além disso, nenhum tombamento ou registro de bem imaterial foi decidido na reunião de 9 de março deste ano, que foi transmitida no YouTube e marcou a retomada das atividades do conselho. Falas de novos membros geraram incômodo e constrangimento entre presentes ouvidos pela reportagem sob condição de anonimato.
Larissa Peixoto, que tem vínculo de amizade com a família Bolsonaro e assumiu a presidência do Iphan em 2020, encerrou o encontro de duas horas e meia com uma homenagem. "Como ontem foi o dia das mulheres, eu vou fugir um pouco do protocolo e quero prestar aqui minha homenagem e minha admiração pelas mulheres, tão virtuosas, sensíveis, ousadas, cuidadosas, amáveis, habilidosas, cheias de força e charme." Na sequência, passou um vídeo do poeta Bráulio Bessa.
Antes, Tassos Lycurgo, professor universitário e pastor que assumiu a direção de patrimônio imaterial do Iphan em dezembro, falou sobre a etimologia da palavra cultura. "O termo cultura, como nós sabemos, ele encontra uma correlação maior no latim, em colere, que quer dizer cultivar", começou. A digressão foi longa, passando por um dicionário alemão do século 18 e pela ideia de civilização francesa para chegar ao patrimônio na Constituição.
O que aconteceu para que essa paralisação fosse tão longa? A pandemia, é claro, afeta esse cenário, mas os problemas que criaram a interrupção precedem a crise sanitária. Segundo membros e ex-membros do órgão, o primeiro imbróglio foi um decreto de Bolsonaro de 2019 que extinguiu conselhos federais com participação da sociedade civil.
Por isso, ao longo de meses, seus membros precisaram justificar ao governo do capitão da reserva a importância de um órgão que já teve nomes como Gilberto Freyre e Pedro Calmon. Durante o período em que esteve nesse limbo administrativo -resolvido com novo decreto em agosto de 2019-, eles realizaram as reuniões em junho, na qual foi aprovado o registro da festa Bembé do Mercado, em Santo Amaro, na Bahia.
O segundo obstáculo foram as próprias trocas em cargos, que se tornaram intensas no governo Bolsonaro, mas já começaram nas gestões anteriores. Relatos dão conta de que as mudanças começaram ainda no governo Dilma Rousseff e que, nos últimos cinco anos, pessoas alinhadas ao então governo de Michel Temer já vinham sendo alocadas em posições dentro de superintendências regionais ou cargos técnicos.
Foi sob essa gestão, inclusive, que aconteceu uma das maiores crises recentes do Iphan. O então Ministro da Cultura, Marcelo Calero, pediu demissão do cargo e acusou o então ministro Geddel Vieira Lima de fazer pressão pela aprovação de um projeto imobiliário nos arredores de uma área tombada em Salvador por interesses imobiliários particulares.
Foi a partir de 2019, no entanto, que as mudanças chegaram com força à cúpula federal da entidade, com a nomeação de Larissa Peixoto para a presidência e de Lycurgo para o departamento que, ao lado do Depam, o Departamento do Patrimônio Material, compõe os mais importantes escalões da gestão patrimonial nacional. A nomeação é criticada por integrantes do setor da cultura, do patrimônio, da história e do urbanismo.
Ex-presidente do órgão, Antonio Arantes não vê a nomeação do pastor Tassos Lycurgo isoladamente como a principal questão. "O problema é que a atividade dele enquanto pastor é incompatível, favorece uma corrente religiosa em detrimento das demais. Como uma pessoa que tem essa missão de catequese evangélica vai dirigir o patrimônio de uma nação como a brasileira? Imagina as decisões que essa pessoa pode tomar, sobretudo se não houver diálogo", questiona.
Além de ter a palavra final em todos os processos de tombamentos e registros de bens imateriais de importância nacional, o conselho também encaminha estudos de campo fundamentais para a discussão patrimonial no Brasil.
O presidente do Iphan é também presidente do conselho, que tem cinco representantes de órgãos do governo, quatro de entidades privadas e 13 da sociedade civil. "Sempre teve conflito, como toda arena política. O importante é que esse conflito reflita questões reais da sociedade", diz Arantes.
"O ponto de partida de todo o processo de preservação é o tombamento ou o registro. Quem decide sobre o tombamento ou não, a aprovação, é o conselho consultivo", diz Arantes. "Se o espaço da sociedade na sua diversidade diminui, ou se torna inexistente, as decisões passam a ser administrativas pura e simplesmente, uma aplicação de normas."
Em resposta a um pedido da reportagem via Lei de Acesso à Informação com a relação das reuniões até 2021 e suas respectivas atas, o Iphan afirmou que os documentos estavam disponíveis em seu próprio site. No entanto, até a conclusão desta reportagem, as atas mais recentes no portal são de 2018.
Conselheiros e ex-membros do Iphan lembram que esses documentos são um registro fundamental da discussão sobre patrimônio no Brasil. Eles ainda relataram à reportagem ter receio de se posicionar com medo de sofrer retaliações ou perderem seus postos ou funções.
Com a pandemia, os servidores do Iphan também afirmam que gestores são vistos sem máscara, reuniões presenciais não estão sendo evitadas -algumas realizadas com número inadequado de participantes- e que casos de Covid não são formalmente informados aos funcionários.
Eles enviaram uma carta à diretoria pedindo o cumprimento de medidas sanitárias na sede, em Brasília, e dizem que ainda não tiveram resposta -algo que se tornou comum, segundo eles, no governo Bolsonaro.
"Desde que o governo Bolsonaro, a situação do Iphan não se tornou fácil", diz Márcia Sant'anna, professora da Faculdade da Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e conselheira. "As reuniões não são tão frequentes [historicamente], mais ou menos quatro por ano, mas de fato desde que o governo começou esse ritmo diminuiu."
Na última reunião, o instituto afirmou que retomará a agenda de encontros e atividades do conselho. "Nesse momento, acho que ninguém sabe como o conselho vai funcionar daqui para frente. A partir dessa última reunião, ainda não dá para saber", diz Sant'anna.
Questionado sobre por que as reuniões do conselho tiveram essa interrupção, como pretendem retomar as atividades, qual a justificativa para as nomeações criticadas e que posicionamento adota em relação aos protocolos sanitários durante a pandemia, o Iphan não se pronunciou.