Documentário indicado ao Oscar estreia no Brasil e mistura Guerra Fria, violência política e jazz
"Trilha sonora para um golpe de Estado" lembra a brutal derrubada de governo no Congo nos anos 1960 e sua relação com gigantes da música negra americana: "Ainda existe um genocídio no Leste do país", diz o diretor
Na essência, “Trilha sonora para um golpe de Estado” trata-se de um thriller político da época da Guerra Fria, que pretende denunciar o que seria um maquiavélico papel dos governos dos Estados Unidos e da Bélgica na derrubada (e posterior assassinato) de Patrice Lumumba, o primeiro-ministro de um Congo que acabara de se tornar independente em 1960.
Mas o documentário do belga Johan Grimonprez, é algo mais do que isso: uma viagem pelo jazz, justificada pelo envolvimento de músicos (junto com líderes políticos) negros americanos, em plena tensão da luta por direitos civis em seu país, nos movimentos de independência de ex-colônias africanas.
Leia também
• Comentários sobre Fernanda Torres podem desclassificar Karla Sofía Gascón? Entenda
• Oscar 2025: Fernanda Torres pode se tornar primeira latina a vencer o prêmio de melhor atriz
• Oscar 2025: filmes que têm a sexualidade como tema central ficam fora da premiação; veja quais
Consagrado pela crítica e pelos festivais de cinema (entre eles, o de Sundance, do qual saiu ano passado com o Prêmio Especial do Júri por Inovação Cinematográfica), o filme estreia esta quinta-feira (30) nos cinemas brasileiros dias após ter entrado na lista de indicações ao Oscar de melhor documentário.
Confira aqui o trailer
Uma hollywoodiana distinção que o diretor, em entrevista ao Globo por Zoom, não deixou de achar um tanto quanto irônica.
"Los Angeles está em chamas, o mundo está em chamas, e então você tem todo esse glamour do Oscar e toda essa discrepância, em contradição com o que está acontecendo" questiona Grimonprez.
"Mas os documentários são meio que uma coisa diferente no Oscar. Nessa categoria, você tem membros em todo o mundo, até do Brasil, que podem votar, enquanto no restante das categorias a coisa é mais voltada para os americanos. Sim, existe de fato uma mudança no Oscar, mas continuamos abaixo de categorias como as de figurinos e maquiagem".
Informado sobre as três indicações ao Oscar do brasileiro “Ainda estou aqui”, filme sobre o sofrimento e a resiliência de uma família cujo pai fora assassinado pela ditadura, naqueles mesmos tempos dos golpes de Estado patrocinados pelas grandes nações, o belga, que não assistira ao longa, no entanto via razões para se alegrar:
“Então vocês definitivamente podem ter uma grande chance!”
Conhecido por “Double take” (2009) — extravagante reflexão sobre os fantasmas da Guerra Fria, mistura de documentário e delirante ficção, na qual o diretor Alfred Hitchcock de 1962 encontra a si mesmo em 1980 —, Johan Grimonprez conta ter tido a ideia que deu em “Trilha sonora para um golpe de Estado” em meio a uma dessas investigações aleatórias no “saco de surpresas da História”.
"Eu conhecia o incidente do sapato batido na mesa por Nikita Khrushchov (protesto do premiê soviético, em assembleia da Organização das Nações Unidas, em 1960, contra o envolvimento ocidental na crise congolesa), mas não sabia que ele tinha a ver com a história do meu país, com esse emaranhamento entre o Congo Belga, o Congo independente e a própria Bélgica" diz.
"Para mim, fazer esse filme foi também uma descoberta. Eu sabia que algo não tinha sido dito, que algo tinha sido varrido para debaixo do tapete, e pensei que era crucial mexer nisso, abrir essa caixa de Pandora e acertar as contas com a história do meu próprio país".
Da rítmica batucada de sapato de Krushchev para a bateria de Max Roach (que, junto com a cantora Abbey Lincoln, esteve no grupo de artistas negros a invadir o plenário da ONU para protestar contra o assassinato de Patrice Lumumba), foi um passo para que o jazz acabasse entrando no filme.
Logo, Grimonprez chegou a “We insist! Max Roach’s freedom now suite”, álbum de free jazz que o baterista e a cantora gravaram em 1960, ligando a luta pelos direitos dos negros nos EUA àquela contra o apartheid na África do Sul.
As faixas do disco, segundo o diretor, acabaram orientando a estrutura ao filme. E, por absoluta e fortuita coincidência, numa pesquisa em arquivos de TV da Bélgica, ele encontrou a gravação de uma apresentação de 1964, auge do genocídio belga no Congo, de Roach e Lincoln interpretando os temas de “We insist!” (“O que foi notável, já que você encontraria nada assim na TV pública dos EUA, uma vez que eles estavam no meio do movimento pelos direitos civis”).
A histórica (e arrepiante) performance da dupla na TV belga pontua momentos decisivos do documentário.
"Eu não poderia deixar de ter a música como protagonista do filme, ainda mais porque ela era um agente histórico daquele momento" diz Grimonprez.
Com um filme de difícil categorização nas mãos, ele até que se saiu bem.
"Eu achava que poderia ser difícil chegar ao público assim, mas na verdade foi o oposto. A música faz com que as pessoas se agitem e fiquem ligadas no filme. Só que ela não está lá apenas para isso. Na pesquisa, descobri que a música era um agente fundamental nessa mudança histórica" conta.
"O “Cha cha cha da Independência” foi composto logo que Lumumba foi libertado da prisão e chegou à mesa-redonda no Plaza Hotel em Bruxelas. E a primeira rumba que aparece no filme, “Ata ndele” (“Cedo ou tarde”), era uma música de protesto de meados dos anos 1950 e foi banida pelos belgas. O compositor, Adou Elenga, foi preso porque cantava sobre um mundo que mudou e que iria virar de cabeça para baixo".
Além disso, diz o diretor, havia o “vaivém” à África, como embaixadores culturais, de músicos de jazz, como os míticos trompetistas Dizzy Gillespie e Louis Armstrong — que, inadvertidamente, teve sua fama usada pela CIA, para obter segredos que facilitariam a execução do golpe, em sua visita ao Congo em 1960 — e a pianista e cantora Nina Simone.
Assim como a estrutura do filme, os narradores também foram escolhas pouco usuais de Johan Grimonprez para “Trilha sonora para um golpe de Estado”.
"Para mim, era crucial, em vez de falar por alguém, falar com alguém. E então abri um diálogo com vários narradores" explica ele, que recorreu a gravações em áudio de Nikita Khrushchov, do diplomata irlandês Conor Cruise O’Brien (uma testemunha do genocídio na área de mineração de Katanga, onde havia o urânio desejado pelos EUA para suas bombas atômicas) e de Andrée Blouin, tão importante quanto esquecida (quando não vilipendiada) ativista política que se tornou chefe de protocolo de Patrice Lumumba.
"Você encontra muito pouca referência a Blouin, geralmente como prostituta ou como quem andou pelas camas dos primeiros líderes independentes da África"
Juntam-se a essas vozes as de agentes americanos e britânicos (a quem Grimonprez fez as perguntas embaraçosas) e tem-se retratado um intrincado jogo de intrigas que envolve ainda líderes de grandes potências (como Khrushchov e o presidente americano Dwight D. Eisenhower), mercenários, generais, diplomatas, empresários, rebeldes, Fidel Castro, Malcolm X (que deu o nome a uma de suas filhas de Gamilah Lumumba, em homenagem ao congolês) e, fornecendo a trilha sonora, gigantes do jazz como Thelonious Monk, John Coltrane e Duke Ellington.
"Cada pequena história ali poderia ser um filme inteiro" diz ele, que passou cerca de um ano cortando cenas (e possíveis custos fora do orçamento) de um filme que tinha quatro horas de duração e chegou a pouco mais de duas.
"Mas, até duas semanas atrás, ainda estávamos no vermelho. Eu dou aulas para me manter financeiramente. Esses não são filmes que dão dinheiro, embora agora, com toda essa publicidade e com a entrada de distribuidores internacionais, como esses do Brasil, ele esteja dando um pouco de lucro".
"Pirateado"
Segundo o belga, “Trilha sonora para um golpe de Estado” teve uma receptividade até melhor do que esperava na Bélgica, onde ganhou uma sessão no bairro congolês de Bruxelas.
Nos EUA, foi exibido no bairro nova-iorquino do Harlem, “não muito longe do Hotel Theresa” (onde Malcolm X deu abrigo a Fidel Castro, que tinha sido expulso de um hotel, em visita à cidade para conferência na ONU — cena que faz parte do filme).
“Pirateado”, como diz ele, no Congo, o longa estreou semana passada no Quênia (com a presença dos netos de Lumumba na première em Nairóbi) e também foi premiado no Egito.
No fim das contas, Grimonprez se orgulha de ter feito um filme que “não é tanto sobre o silêncio acerca do passado, mas também sobre o silêncio acerca do que está acontecendo hoje”.
"Ainda existe um genocídio no Leste do Congo por causa de milícias privadas, como a M23, que estão sendo meio que protegidas pelos interesses da mineração. Elas estão usando o estupro como uma ferramenta de guerra para esvaziar as aldeias e controlar a exploração de coltan, cobalto e lítio, os minerais que compõem as baterias dos nossos Teslas e iPhones. Isso não acabou e é tão ruim quanto em Gaza" denuncia.
"Então, o que está sendo falado ali é sobre como o assassinato de Patrice Lumumba foi o marco zero da maneira com que o Ocidente iria lidar com as riquezas do país africano em um tipo neocolonial de apropriação".