Trilhas sonoras de novela marcaram época de ouro da televisão brasileira
Trilhas sonoras frequentemente apareceram entre as mais vendidas do Brasil
“Onde está o meu amor? Quem será, com quem se parece?”. A pergunta, de forma cantada ou interpretada, poderia ser feita por Lurdes (Regina Casé) em busca do seu filho, Domênico (Chay Suede), em “Amor de Mãe”. Entretanto, ela foi guiada durante meses pela voz doce e aconchegante de Maria Bethânia, na canção “Onde está o meu amor”, trilhando a procura incansável da mãe que teve seu filho vendido durante meses da novela. A trama, que se encerrou ontem, teve uma das trilhas sonoras mais comentadas dos últimos anos e seu fim marca, justamente, término de uma era de 50 anos da Som Livre no Grupo Globo de Comunicação.
No começo da semana, o grupo comunicou a venda da gravadora à Sony Music, que pertence a um dos três grandes conglomerados da indústria fonográfica mundial. Apesar de não dar detalhes sobre o processo de transição ou de como vai funcionar futuramente, a negociação marca, principalmente, o término de um elo entre a produção das trilhas sonoras de novelas da emissora carioca e as vendas de álbuns pelo selo de música. Uma parceria quase única no mundo todo, em que geralmente emissoras e grandes estúdios vendem seus discos através de gravadoras parceiras.
A história da Som Livre se confunde com a das telenovelas. O braço fonográfico do grupo Marinho foi criado em 1969 pelo produtor musical João Araújo, pai de Cazuza e o primeiro brasileiro vencedor do Grammy. O objetivo era comercializar trilhas sonoras e o primeiro disco de dramaturgia lançado por ela foi da trama de “O Cafona”, em 1971. Nessa época, a TV Globo havia encerrado a parceria com a gravadora Phillips.
A explosão das trilhas sonoras surge em um contexto de ditadura militar e início da consolidação da novela como o grande produto nacional. As duas mesclas fizeram a Globo e a Som Livre competirem com as gravadoras internacionais. “Tais forças atuaram no panorama musical desde os anos 60, impondo novas estratégias de promoção e produtos, reorganizando o mercado de bens culturais como um todo. A novela logo se tornaria um dos principais produtos culturais entre nós, mas, também no mercado mundial”, disse Heloísa Maria dos Santos Toledo, na tese de doutorado “Som Livre: trilhas sonoroas das telenovelas e a difusão da música”, da Unesp.
Ascensão da MPB
A pesquisa analisa as trilhas sonoras como potências da música nacional, em um período de tempo que vai até 2005, quando a gravadora deixou de comercializar exclusivamente os materiais sonoros de telenovelas. Ela ainda mostra como grandes nomes da Música Popular Brasileira (MPB) se firmaram através desse formato. Com o fim da exclusividade nos anos 2000, raramente uma trilha voltou a fazer tanto sucesso quanto antes, mas músicas eram emplacadas na parada, como a canção “I Want To Know What Love Is”, de Mariah Carey, em Viver a Vida, a qual só emplacou no Brasil.
O poder das trilhas era tanto, que na década de 1970 grandes músicos da música brasileira produziam músicas exclusivamente para as novelas, como é o caso da trilha de “O Bem Amado”, produzida por Toquinho e Vinícius de Moraes. “As trilhas sonoras por muito tempo tiveram grande prestígio. Há algumas que foram compostas por uma única pessoa, como foi a de “O Bem Amado”, por Toquinho e Vinicius de Moraes; tem a de “O Bofe”, por Roberto e Erasmo Carlos. São coisas realmente de grande prestígio você pegar um compositor e fazer algo exclusivo para as novelas”, explica Fábio Cabral, proprietários da loja Passadisco.
As trilhas sonoras foram responsáveis também por revelar grandes artistas da música nacional e por trazer exclusividades para as novelas. “A trilha sonora de "Gabriela", em 1975, tem as primeiras gravações de Fafá de Belém. Tem Maria Bethânia cantando uma música inédita, tem gravações também de Djavan. E hoje dificilmente tem uma trilha que seja feita para novela, tem uma ou duas músicas que utilizam”, enfatiza Fábio.
Algumas telenovelas foram responsáveis por emplacar discos entre os mais vendidos no Brasil e até mesmo ditar algumas dinâmicas musicais. Um desses exemplos foi o da novela “O Rei do Gado”, em 1996, que chegou a bater 2 milhões de cópias vendidas, sendo um número alto até para os grandes artistas nacionais. A trama rural pode ser considerada, ali, a explosão do sertanejo como o ritmo mais tocado até hoje no país. O álbum da produção de Benedito Ruy Barbosa trazia Zezé de Camargo e Luciano, Roberta Miranda, Zé Ramalho e Xitãozinho e Xororó entre os nomes.
Uma outra trama que fez história foi “Pantanal”, da Rede Manchete, do mesmo autor. Uma das poucas fora da TV Globo a emplacar a trilha sonora entre as mais vendidas. Foi produzida por Marcus Viana e celebrou a audiência da produção, que por vezes comprometia os números da emissora carioca em uma época de hegemonia.