Um novo olhar sobre Palmares em 'Angola Janga'
Livro mais recente do ilustrador, autor de HQs e pesquisador Marcelo D'Salete, alia delicadeza e força para a reconstituição ficcional, mas bastante real do Quilombo de Palmares, em Alagoas
Essa matéria começa com um convite. Um convite para você puxar pela memória o que sabe ou o que aprendeu sobre Palmares. Quais líderes saberia citar de cabeça além de Zumbi? Quanto tempo durou Palmares? O que você sabe sobre a dinâmica e o sistema que regia o lugar? Qual sua importância histórica e simbólica na construção do Brasil? Não se acanhe (ou sim, se acanhe!) se não souber responder essas perguntas elementares. O Brasil é assim com sua história. Padece de memória para persistir errando.
"Angola Janga" (pequena Angola, na língua banto quimbundo, nome original de Palmares), o mais recente livro de Marcelo D'Salete não é um livro didático, nem pretende contar a história do quilombo com rigor histórico acadêmico. Ainda assim, responde ou ilumina muitas questões sobre o fato. Mais uma vez, o autor se utiliza do olhar do oprimido (os escravizados), o que constitui em si uma nova abordagem do evento, trazendo um frescor necessário e quase um estranhamento, já que somos acostumados ao outro lado da narrativa. Ele fez isso em "Cumbe", seu livro anterior.
A reconstituição se dá a partir da subjetividade ficcional, mais sugestão e menos “historicismo” - tornando tudo palpável, bastante “real” - por mais contraditório que pareça. Nela, Marcelo D'Salete conta os últimos anos ou a derrocada de Palmares, mas com constantes flashbacks para contextualizar os momentos narrados.
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Há pouco texto nessa HQ, muitas sequências “mudas”, o que dá maior carga dramática, acentuada pelo traço quase expressionista, carregado de contrastes de D´Salete. Seu desenho é delicado, mas tem muita força. É belo, e também melancólico. Características que ecoam o drama vivido pelos palmaristas.
Não reconhecemos o racismo estrutural praticado na falta de representatividade dos negros em muitas faces da nossa sociedade. Fora o racismo sutil, aquele do dia a dia, quase naturalizado, mas igualmente cruel.
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Marcelo D'Salete, 38 anos, é paulista, com formação em design gráfico e artes plásticas, além de ser mestre em história da arte. Seus primeiros quadrinhos trazem a tônica urbana e seus personagens invisíveis. Garotas de programa, guardadores de carro... pessoas do nosso cotidiano que pouco damos conta. Muitos desses personagens são negros, como ele próprio. Nos últimos dois livros, ele foca sua lente no passado histórico brasileiro, resgatando nossa memória pouco estimulada. No dia que traçarem o caminho do quadrinho brasileiro, certamente a obra de D'Salete vai estar entre as mais importantes.
Nos EUA, nestes últimos meses, já recebeu diversas críticas muito positivas, colocando a obra como uma das melhores do ano. Estamos negociando com algumas editoras a publicação do "Angola Janga" no exterior também. É provável que ele tenha uma trajetória tão positiva quanto a do "Cumbe". Há interesse grande pelo tema e pelo modo de se contar essas narrativas. E é importante dizer que são histórias sobre nosso passado e sociedade.