Uso de IA em documentários levanta questões sobre limites éticos para recursos digitais
Filmes como 'About a hero', com roteiro concebido por ferramenta de IA, e 'Eno', que cria milhões de combinações de imagens do músico Brian Eno, editadas num programa de computador, levantam debate em festival de Amsterdã
Lá atrás, na década de 1980, o documentário “A tênue linha da morte” (1988), de Errol Morris, foi considerado inelegível para o Oscar da categoria pelo uso excessivo de trechos dramatizados. O premiado documentarista americano, mais tarde ganhador do prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood com “Sob a névoa da guerra” (2003), havia encenado sequências para ilustrar sua investigação sobre um caso real de um homem inocente sentenciado à morte.
— Não havia registros reais disso. Então como mostrá-los? Senti que a dramatização era uma forma apropriada para fazer isso— lembrou Morris durante o Festival de Veneza deste ano, onde exibiu “Separated”, documentário sobre um sombrio capítulo da política de imigração dos Estados Unidos, e no qual personagens reais encenam memórias da separação forçada de entes queridos.
Leia também
• Globoplay, Disney+, Max e Apple TV+: confira as estreias de dezembro de 2024 das plataformas
• Netflix: confira as estreias de dezembro de 2024 da plataforma
• Prime Video: confira as estreias de dezembro de 2024 na plataforma
Hoje, esse tipo de dispositivo dramático já é um dos verbetes mais comuns no léxico do cinema documental contemporâneo. Mas o episódio ocorrido com Morris quase 30 anos atrás volta à memória com a estreia mundial de “About a hero”, título que abriu o IDFA (sigla para Festival Internacional de Documentários de Amsterdã) deste ano. O filme do sueco Piotr Winiewicz é um experimento híbrido, baseado em roteiro inteiramente concebido por uma ferramenta de inteligência artificial (IA). O projeto foi inspirado em uma citação de Werner Herzog que afirmava que “um computador não fará um filme tão bom como o meu em 4.500 anos”.
Winiewicsz e sua equipe desenvolveram uma ferramenta que imita o estilo dos filmes de Herzog, treinada com a voz e a obra do cineasta alemão. A história resultante gira em torno da investigação de um avatar de Herzog sobre a morte de um operário de uma pequena cidade e usa a voz distinta do diretor, entrevistas com filósofos e cientistas e trechos dramatizados. Mas nunca podemos identificar exatamente onde e quando a IA desempenha o seu papel.
Em plena era das notícias falsas, deepfake, desinformação, até que ponto podemos confiar num documentário que usa IA? A tecnologia pode ser usada de forma ética, como teve que provar Morris em relação à encenação?
— Meu filme é, antes de tudo, uma meditação sobre a nossa complexa relação com a tecnologia — disse o diretor sueco em Amsterdã, que batizou a ferramenta que gerou “About a hero”, de Kaspar, uma referência a “O enigma de Kaspar Hauser” (1974), um dos primeiros filmes de Herzog.
No IDFA, o filme de Piotr Winiewicz funcionou como um pontapé inicial de uma programação que abrigava muitas discussões sobre os desafios e dilemas do uso de material gerado artificialmente em histórias não ficcionais.
O debate foi inspirado por diferentes filmes, como “Eno”, sobre o músico e compositor Brian Eno, exibido na mostra paralela Signed, dedicada a “aventuras cinematográficas”. O documentário de Gary Hustwit combina centenas de horas de arquivo do artista britânico com material filmado recentemente pelo diretor e sua equipe. Esses materiais foram então divididos em conjuntos de informações e editados com a ajuda de um sofisticado programa de computador, que cria milhões de versões possíveis deles, para que nenhuma visualização seja igual duas vezes. Ou seja, a “máquina” hierarquiza as informações a que deveríamos assistir, mesmo omitindo algumas ou destacando outras.
“Eno” é, de certa forma, um documentário “vivo”.
— Por que os filmes têm que ser essas coisas fixas, estáticas? Por que não podem ter estruturas mais fluidas, às quais pudéssemos continuar acrescentando coisas, revisando as versões? — questiona o diretor britânico. — Sempre houve essa restrição no meio cinematográfico e, agora, quando tudo é digital, essa limitação de uma mídia física já não mais tem razão de ser. Por que deveríamos ainda nos sujeitarmos às mesmas restrições de 130 anos atrás, quando os meios de comunicação social nasceram?
O filme de Hustwit leva a outro território sensível no campo do documentário: a importância de material de arquivo e a preservação da memória. Tamara Shogaolu, uma cineasta afro-latina que usa imagens geradas por IA para preencher lacunas em imagens de arquivo, ofereceu algumas intervenções sobre o assunto durante o painel “The humans have entered the chat” (em tradução livre, “os humanos entraram na conversa”). Como artista cujo trabalho procura abordar a exclusão de vozes marginalizadas de materiais tradicionais e das imagens de IA, ela questiona a neutralidade dos arquivos.
— Quem detém o poder na memória? O que deve ser salvo em arquivos e o que pode ser apagado? Como a IA pode ser considerada um registro da nossa trajetória histórica como seres humanos? E por que ainda não falamos sobre quem está no comando desses registros? — questionou Shogaolu, que levou para o IDFA a instalação imersiva “Oryza: healing ground”.
Os integrantes do debate concordaram com Shogaolu, que enfatizou a importância de compreender a IA como uma ferramenta que exige pensamento crítico e trabalho para ser utilizada de forma eficaz.
— A inteligência artificial reflete nossa sociedade, com os seus preconceitos. Quanto mais você desconstrói esses sistemas, vê que eles não são caixas pretas mágicas. São ferramentas moldadas pelas escolhas humanas e por isso precisamos aprender a navegá-las com alfabetização e intenção — afirmou a artista.
O veterano Morris, de 76 anos, por seu lado, é sucinto sobre os possíveis impactos da IA no cinema não ficcional:
— É possível criar imagens falsas? Sim. As pessoas mentem sobre imagens, adulteram-nas. Não foi a IA que começou a fazer isso. É uma prática que está conosco provavelmente desde a origem da fotografia. As pessoas aprendem a tirar fotos e também a falsificá-las ao mesmo tempo. Nosso trabalho é descobrir o que é falso e o que é real.