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CULTURA

Videogame usa obras de Botticelli e Rembrandt como pano de fundo para desafios bem-humorados

Criado pelo inglês Joe Richardson, 'Death of the reprobate' traz ainda temas de mestres da música, como Beethoven e Vivaldi, com narrativa influenciada pelo grupo Monty Python

Tela do jogo 'Death of the reprobate', com referências a obras de Ticiano e Hendrick Ter Brugghen Tela do jogo 'Death of the reprobate', com referências a obras de Ticiano e Hendrick Ter Brugghen  - Foto: Reprodução

Criatura peculiar, o ser humano. Não há animal na Terra que se mova tanto e tão rapidamente entre o sublime e o patético. Ele sabe pintar imagens em movimento e compor sinfonias quase divinas. Mas também sabe proferir insultos atrozes, ferindo outras pessoas ou ficando com raiva. Rembrandt, Botticelli ou Mozart pertencem a uma espécie que, ao mesmo tempo, gera exploradores, assassinos e imbecis. Às vezes, gênio e lixo até coincidem no mesmo indivíduo. Aí outro ser humano, Joe Richardson, teve uma ideia estranha: juntar tudo isso em um videogame.

Cada tela de “Death of the reprobate” é uma obra-prima da pintura renascentista, romântica ou rococó, que o criador inglês põe em movimento. Ao fundo, ressoam melodias famosas de Beethoven ou Vivaldi. Num palco tão elevado, porém, o desenvolvedor coloca uma série de tipos infames, cada um mais ridículo, lamentável ou desprezível. E constrói um delírio narrativo onde se percebe a influência do Monty Python — grupo cômico britânico que fez sucesso na TV e no cinema, com filmes como “A vida de Brian” (1979) e “O sentido da vida” (1983), entre outros, usando e abusando do nonsense.

 

Tudo, ou quase, foi criado só por ele. Embora, talvez, o mais absurdo de tudo seja que a fórmula funciona. Tanto que o título fecha uma trilogia (começou com “Four last things” e continuou com “The procession to calvary”) que rendeu a Richardson boas críticas, vendas e reações do público. Uma delas, em particular, até o surpreende:

— Tenho recebido alguns comentários de professores ou pesquisadores de arte ou história, e eles são sempre surpreendentemente positivos. — diz ele.

Nada agradável, porém, parece habitar a alma do protagonista. No início do jogo, Filemón, o Bastardo, visita seu pai, Marcial, o Imortal. O apelido do pai é mentiroso: ele está nas últimas. Por outro lado, o filho é fiel ao apelido: não está nem um pouco interessado na saúde do velho, apenas parece preocupado em herdar o trono. Para obtê-lo, porém, o pai exige que ele mude seu curso de vida e pratique sete boas ações.

Tela do jogo 'Death of the Reprobate', de Joe Richardson Tela do jogo 'Death of the Reprobate', de Joe Richardson — Foto: ReproduçãoA

A partir daí, o jogador deve conseguir levar Filemón — Malcolm, The Shit, em sua versão em inglês — para resolver as necessidades improváveis dos habitantes da cidade. Envolve conversar, coletar objetos e resolver quebra-cabeças — o gênero é conhecido como aventura gráfica de apontar e clicar. Mas, acima de tudo, contemplar como ganham vida as pinturas de Bruegel, o Velho ou de James Seymour, apreciar o piano e os violinos e rir de diálogos e situações cada vez mais surreais.

Tudo funciona com a condição, claro, de apreciar um humor pouco politicamente correto, que alguns usuários irão adorar, mas outros poderão achar muito escatológico, macabro ou vulgar.

Uma das primeiras interações vale resumir o jogo: um homem quer pescar, mas não consegue enquanto outros dois vizinhos jogam pedras na água. Quando Filemón tenta convencê-los a parar, eles lhe entregam um longo e significativo manifesto anticapitalista para explicar que deixaram tudo para trás com o único objetivo na vida de fazer o que bem entendem. E descobriram que o que mais os satisfaz é precisamente atirar os chineses ao mar.

Mais tarde, na galeria de arte da aldeia, o protagonista descobre a mesma dupla pintada num dos quadros. Quando ele convence um trio de macacos a modificar a tela, a realidade também muda. E o pescador pode finalmente realizar o seu desejo. Menos uma boa ação na lista. E assim por diante.

— Não posso negar que arte, música e humor são as chaves que fazem do jogo o que ele é. Mas um dos meus principais pontos fortes é garantir que eles estejam cuidadosamente interligados. Mais do que uma mistura, eu a definiria como uma tapeçaria desses elementos. Tudo está conectado — acrescenta Richardson.

O próprio cenário às vezes contribui para resolver um quebra-cabeça; Filemón pode participar de danças ou exposições musicais; e as conversas abordam o Renascimento com ironia, sem renunciar à sátira política contemporânea. Embora o autor seja sempre claro no primeiro golpe:

— A força que tudo move é a arte, ela também norteia a história. Começo criando os cenários, as animações, a parte artística, e a partir daí o processo de escrita vira um quebra-cabeça para montar o que existe de uma forma que faça sentido — diz Richardson.

O criador explica que passa muito tempo olhando pinturas em sites de museus, galerias ou na Wikipedia. Em busca de cenas para seus videogames, mas, acima de tudo, como puro prazer pessoal:

— Não poderia tratar com tanto carinho minhas criações se não amasse também a arte.

Há anos, ele saltou entre a animação, a música, a ilustração ou a escrita, até perceber que os videojogos lhe permitiriam juntar tudo. Então ele também aprendeu a programar. A única coisa que lhe resistiu, então, foi uma lacuna eterna:

— Não sei desenhar!

Assim, em 2016, para seu primeiro videogame, “The preposterous awesomeness of everything”, ele usou montagens fotográficas.

Mas, pensando bem, ele acredita que a decisão alienou uma parte do público. Portanto, o entusiasmo para sua trilogia de pintura não se deveu a nenhuma “grande ideia”, segundo Richardson:

— Pensei: “E se eu fizesse a mesma coisa, mas com um material mais atraente?” E o material mais atraente que consigo imaginar é a arte renascentista.

O domínio público deu-lhe milhares de maravilhas para retocar. E seu talento lhe permitiu fazer dois videogames sozinho. Para “Death of the reprobate”, pela primeira vez, contou com a colaboração de um músico: Eduardo Antonello.

Em busca de respostas
No entanto, além de tudo isso, Richardson busca em suas obras respostas para uma sociedade que ele não compreende completamente:

— A bagunça avassaladora, caótica, nojenta, bela e insondável do mundo real me assusta até a morte. Fazer videogames é uma rota de fuga, mas não uma cura. Enquanto me escondo, caio cada vez mais fundo no buraco do desespero existencial. Quando saio da caverna tudo me parece ainda mais assustador. E aí eu saio de cena. Sou bom em fazer videogames, mas sou péssimo em viver.

O criador diz que crescer entorpeceu seu instinto de estar sempre em movimento. Mas ele também não quer se acomodar ainda “numa mediocridade confortável”. Portanto, chega de aventuras gráficas, chega de arte renascentista. Richardson promete que seu próximo trabalho será diferente. Melhor? Pior? O negócio é esperar para ver: o ser humano é capaz de tudo.

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