MÚSICA

Virgínia Rodrigues fala sobre novo disco, ancestralidade, racismo e gordofobia

Cantora baiana, que vai lançar álbum com canções de Paulinho da Viola e Tiganá Santana, reflete sobre sua carreira, muito mais valorizada lá fora

Virgínia Rodrigues Virgínia Rodrigues  - Foto: Divilgação

Assim que ouve a ideia do fotógrafo para que deixe os ombros de fora na hora de posar para foto, Virgínia Rodrigues vai logo avisando: “Só não pede para tirar minhas guias do pescoço”. O último desavisado que ousou fazer isso tomou uma bronca daquelas.

A cantora de 59 anos se diverte contando sobre o acontecido no tom bem-humorado de falsa braveza e ironia que forja sua personalidade. Está sentada no restaurante de um hotel na Glória, no Rio, onde espera o café fresco que o produtor Fabio de Souza logo leva até ela. Então, dispara:

— Café, sopa e homem só quente, minha filha.

Virgínia faz graça, mas religiosidade é coisa séria para esta baiana do candomblé, cujo canto está intimamente ligado à ancestralidade. Foi o que mostrou mês passado, na Biblioteca Parque, Centro do Rio, onde fez show dentro da programação do Parque de Ideias. O projeto, sob curadoria de Marcio Debellian, a trouxe de volta aos palcos cariocas após jejum de quatro anos.

Assim que a figura imponente da artista surgiu em cena, vestida de com as cores de Oxum (amarelo) e Nanã (roxo), cochicharam na plateia: “É uma orixá viva”. A partir dali, a incomparável voz mezzo soprano da cantora, conhecida pela profundidade emocional e pela facilidade de transitar do extremo grave para o agudo sem perder a precisão, conduziu o público a uma dimensão espiritual. “Parece que tomei um passe”, sussurrou outra pessoa, no final do show, que mais pareceu um ritual.

Virgínia apresentou o repertório do disco que lançará em janeiro, o sétimo de sua carreira. “Poesia e nobreza” mistura canções de dois autores negros de gerações distintas do Brasil: Paulinho da Viola, que completou 80 anos e dispensa apresentações; e o cantor, filósofo, pesquisador baiano Tiganá Santana, de 41 anos, primeiro compositor brasileiro a gravar canções em línguas tradicionais africanas. Como “Mukongo”, dedicada a Oxossi, uma das canções gravadas pela cantora.

— Minha música é regada à religiosidade porque é ancestral. O meu canto é um canto de resistência. Canto pensando nos meus ancestrais, em nunca esquecer quem eu sou de verdade e de onde eu vim — afirma ela.

Da Fazenda Grande do Retiro, subúrbio de Salvador. E de lá que ela veio. Neta e filha de mulheres católicas, começou a cantar em procissões, coros de igrejas e corais de fundações. Cantava quando estava triste e quando estava alegre. Jamais imaginou que esta seria sua profissão. "Não vivia de sonho", como conta.

 

A realidade humilde se impunha desde que tinha 13 anos e se dividia entre os trabalhos de manicure e o emprego em em casas de família. Assim como a mãe. O pai era aposentado e vendia picolé para complementar o orçamento. De tanto elogiarem sua voz, acabou se inscrevendo em um programa de calouros na TV baiana. Aos 22 anos, venceu o concurso três vezes seguidas.

Até que foi convidada por Márcio Meireles para integrar o Bando de Teatro Olodum depois que o diretor a viu cantar em uma missa. Na peça “Bye, Bye, Pelô”, encarnou uma personagem sem falas, que surgia no final da encenação soltando a voz quando a protagonista morria.

Foi ali, no Teatro Vila Velha, na capital baiana, que Caetano Veloso a viu pela primeira vez. Interpretava “Verônica”, canção que marcou a infância do baiano, que se apaixonou por aquela voz. E produziu os três primeiros discos dela: “Sol negro”, “Nós” e “Mares profundos”, lançados pela extinta gravadora Natasha e os únicos álbuns da artista que não estão nas plataformas digitais.

Com a guarida do compositor, Virgínia ganhou projeção, elogios da crítica, vendeu discos, embarcou em seguidas turnês estrangeiras. Lá fora, cantou na Casa Branca, quando o ex-presidente americano Bill Clinton chegou a citá-la como sua cantora favorita do mundo. Foi entrevistada por David Byrne ao vivo na TV americana. Definida pelo “The New York Times” como “uma das mais impressionantes cantoras que surgiu do Brasil”. Teve sua história, da pobreza ao estrelato, comparada à de Cinderela.

O talento, louvado como deveria fora do Brasil, jamais teve o mesmo reconhecimento por aqui, o que provocou certa mágoa.

— Todo artista quer ser reconhecido em seu país. Nunca fiz uma turnê no Brasil. Lotei teatros, a imprensa foi me ver, mas tudo porque era afilhada do Caetano — afirma.

Virgínia não gosta de ficar reclamando, mas revela que, até hoje, não consegue ter uma estabilidade completa na profissão.

— Pago os boletos e compro remédio com dificuldade. Sou hipertensa, diabética... Mas, paciência. Não acho legal esse tom amargurado de “ah, não sou reconhecida”. Só bota a gente pra baixo, aumenta o problema.

É uma realidade que diz muito não só sobre como o país trata artistas que não fazem música comercial como provoca reflexão sobre feridas mais profundas como racismo e gordofobia.

"O carnaval da Bahia é totalmente embranquecido"
Virgínia Rodrigues não gosta de carnaval, mas credita ao “racismo estrutural” o fato de muitos artistas negros baianos não receberem convite para cantar na folia.

— Gente como Mariene de Castro, por exemplo... O carnaval da Bahia é totalmente embranquecido, mas a música do carnaval da Bahia é negra. Colocam no trio elétrico um povo que não tem a nossa cara. E os donos da música baiana não são brancos, são negros – analisa ela, falando ainda sobre obstáculos enfrentados por ser uma artista fora dos padrões estéticos impostos pelo mercado. — Queria saber o que tem a ver o meu canto com a minha barriga grande?

Esta é uma pergunta que não cabe a ela responder. E Virgínia só quer saber de pensar em música. A ideia de cruzar um repertório (nada óbvio) de Paulinho da Viola (como “Cantoria”, “Cidade submersa” e “Minhas madrugadas”) e Tiganá Santana faz todo o sentido para ela.

— Os dois têm “Poesia e nobreza”, como diz o título do disco, em suas composições. Uma elegância. Não conheço Paulinho pessoalmente, mas sempre sonhei em gravá-lo.

Tiganá, que também produz o disco, sugeriu canções que tinham a ver com a proposta artística de Virgínia.

— Ele sabe que não gravo canções que foram sucesso na voz do compositor. Prefiro o que ninguém gravou. Paulinho tem um monte de sucessos que amo, só não gostaria de gravar. Sou antipática, gosto de ser exclusiva — diverte-se.

Se o sambista sempre foi referência na vida para a artista, Tiganá se tornou um filho e também um pai, como ela explica revelando um momento marcante da amizade de 15 anos.

— Ele me incentivou, me deu motivos para continuar cantando numa época em que eu queria parar. Não estava motivada. Era uma canseira misturada com falta de trabalho e reconhecimento. Ele não deixou parar. Me mostrava músicas e me dizia palavras de incentivo que precisamos ouvir. Por isso, não concordo que a gente só aprende com os mais velhos. Velhos também aprendem com os novos — diz. — Aliás, o povo agora está com essa frescura de “ah, senhora está no céu”. Não ligo que me chame de senhora. Não quer envelhecer, morra novo

Também foi Tiganá quem fez Virgínia mergulhar no repertório de compositoras que gravou em seu último disco, “Cada voz é uma mulher”.

— Não conhecia muitas delas. Sueli Costa e Dolores Duran, claro, mas não sabia que Luedji Luna era compositora, Iara Rennó…. Fiquei com uma vergonha danada. Era minha obrigação conhecê-las. Descobri que sou machista. Mas ali um mundo novo se abriu para mim.

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