Argentina pós-Milei não deve romper com Mercosul, avaliam empresários e especialistas brasileiros
Brasil é segundo maior parceiro do país, atrás da China. Escassez de divisas torna dolarização da economia quase impossível, mas preocupação com atrasos no pagamento continua
Embora a eleição do ultraliberal Javier Milei para a presidência da Argentina traga incertezas em relação aos rumos do comércio com o Brasil, especialistas e representantes de diversos setores da economia brasileira, que exportam para o país vizinho, não acreditam numa ruptura, como o eleito defendeu durante sua campanha.
O Brasil e o Mercosul são muito importantes para a Argentina e a possibilidade de saída do acordo é vista com ceticismo. A corrente comercial (exportações e importações) entre os dois países movimenta algo próximo de US$ 30 bilhões por ano, e o Brasil é o segundo maior parceiro da Argentina, atrás da China.
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Os especialistas lembram que hoje o problema dos argentinos é a falta de dólares — e será preciso atrair divisas internacionais para resolver esse problema.
Portanto, a promessa de dolarizar uma economia com tamanho de US$ 630 bilhões (que é o Produto Interno Bruto argentino) é uma tarefa quase impossível pela escassez de divisas, dizem os analistas e, na prática, poderia gerar uma inflação dolarizada.
— Não acho que a Argentina sairá do Mercosul. Mesmo tendo a China como principal parceira comercial, o país vizinho precisa dos países da América do Sul que integram o bloco. Uma hipótese seria os chineses pressionarem os argentinos pela saída da Argentina para se beneficiarem disso. Mas aí fica inviabilizado o fechamento do acordo entre Mercosul e União Europeia, e o prejuízo é grande — diz José Augusto de Castro, presidente-executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro
No ano passado, o Brasil registrou um saldo positivo de US$ 2,2 bilhões no comércio com a Argentina. Foram US$ 15,3 bilhões em exportações contra US$ 13,1 bilhões em importações de mercadorias argentinas. Castro lembra que essa corrente comercial já ultrapassou US$ 40 bilhões, por volta de 2018, mas as sucessivas crises argentinas encolheram esse fluxo.
Para Fernando Pimentel, diretor superintendente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), é cedo para prever o que pode acontecer nas relações comerciais entre Brasil e Argentina, mas ele não acredita em ruptura.
A adesão de uma ala da direita argentina mais moderada à campanha de Miliei, que teve o apoio do ex-presidente Mauricio Macri (que também é empresário) e da candidata derrotada em primeiro turno Patrícia Bullrich, é uma sinalização de que as ameaças de medidas comerciais extremas com parceiros importantes pode ter sido apenas retórica de campanha.
— Governar é diferente de fazer campanha. Acho difícil ter um rompimento com o Mercosul, apesar de suas imperfeições. E é preciso finalizar o acordo com a União Europeia. Brasil e Argentina estão muito conectados comercialmente — diz Pimentel.
O setor têxtil tem na Argentina seu principal mercado exportador, com cerca de US$ 250 milhões em vendas anuais, embora este ano haja queda de 15%.
Pimentel observa que as empresas demoram até seis meses para receber os pagamentos das vendas para a Argentina por conta das medidas recentes tomadas pelo governo para reduzir a saída de dólares. O volume de vendas de têxteis para a Argentina já chegou a US$ 300 milhões por ano.
Haroldo Ferreira, presidente-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) observa que o cenário é incerto, especialmente ao futuro do Mercosul.
— Estamos monitorando principalmente a questão do Mercosul. Caso ocorra uma ruptura do bloco, teremos sim um problema mais grave, já que o calçado brasileiro, que hoje entra com tarifa zero, teria uma taxa de 35% para entrar no país vizinho — explica Ferreira.
Mas, diz ele, o viés ultraliberal de Milei pode ajudar na queda de barreiras que hoje existem para aquele mercado, especialmente no que se refere às licenças de importação.
No entanto, o problema continuaria sendo a capacidade de pagamento do país vizinho diante da necessidade de preservação das parcas reservas internacionais da Argentina.
A Argentina é o principal destino do calçado brasileiro no exterior. Entre janeiro e outubro, a Argentina importou 12,9 milhões de pares por US$ 202,9 milhões, resultado 10% inferior em volume e 28,7% superior em receita na relação com o mesmo período do ano passado.
Em 2023, o Brasil perdeu cerca de 10% de participação no mercado argentino de calçados — fatia absorvida por países da Ásia, como China, Vietnã e Indonésia. Hoje, a participação no mercado argentina está em 38% — era de 47% em 2022.
A analista política, Sol Azcune, da XP, escreveu em relatório enviado a clientes, nesta manhã, que, por se tratar de uma figura relativamente nova na política, a eleição de Milei gera certa incerteza.
Por isso, diz ela, seu discurso nas próximas semanas e escolhas para o gabinete serão monitorados de perto pelo mercado. Azcune lembra que Milei ganhou destaque com propostas sociais e econômicas que dividiram opiniões, como a dolarização da economia argentina e a eliminação do Banco Central.
"Mas durante a reta final da corrida, ele moderou suas propostas e discurso, alinhando-se com a coalizão de centro-direita Juntos por el Cambio e sua candidata, Patricia Bullrich. Manter esse relacionamento será relevante para a governabilidade", diz a economista.
A necessidade de atrair investidores internacionais para a Argentina recompor suas reservas em dólar também pode ser um fator inibidor de medidas mais radicais no comércio, diz Castro, da AEB.
Ele lembra que a quebra da safra de soja na Argentina, este ano, obrigou o país a importar o produto brasileiro.
— A Argentina tinha vendido mais de US$ 2 bilhões em soja para entrega futura, mas com a quebra da safra não tinha como atender aos contratos fechados. A saída foi importar a soja brasileira. Além de falta de divisas, a Argentina também sofreu com falta de sorte — afirma Castro.